Diversos momentos históricos da trajetória política, sociocultural e artística do Brasil foram marcados por tentativas de estabelecimento de uma identidade nacional. Nesse contexto, o conceito de “brasilidade” surge em diálogo com diversos elementos e símbolos, elaborados para a composição desta noção de unicidade e de um sentimento de pertencimento local. Segundo o historiador Eric Hobsbawm, em seu livro “Nações e Nacionalismo desde 1780” (1990), tais representações reafirmam constantemente e ressignificam, de tempos em tempos, o caráter dessa invenção denominada “nação”, ou, como definiu o cientista político Benedict Anderson, uma “comunidade imaginada”. Dentre os elementos simbólicos mais evidentes – frutos de disputas e processos de assimilação para a constituição da chamada “pátria” –, podemos elencar: a bandeira, o brasão, o hino, o mapa e seu território. Em continuidade a essa reflexão, também emergem componentes identitários mais amplos, fluidos ou menos palpáveis, como a língua, a cultura, a religião, a gastronomia, a literatura, a música, as manifestações populares, o esporte e, num âmbito mais moderno, a mídia, a moda, as empresas/indústrias e suas marcas, fundindo-se em um híbrido e multitextural caldeirão cultural.
Segundo o antropólogo Roberto Da Matta, em seu livro “O que faz o Brasil, Brasil?” (1984), a construção de uma identidade social, assim como a edificação de uma sociedade é feita por afirmativas e negativas diante de certas questões. Nessa acepção, a identidade se estabelece pela semelhança, mas também pelo contraste, pela diferença. Isto é, a criação de um “eu” e um “nós” está sempre condicionada à existência de um “outro” ou “outros”. Para o autor, existem duas formas de se definir a identidade brasileira. A primeira, por meio de critérios mais objetivos, quantitativos e claros, tais como o PIB, a renda per capta, a população ou a inflação. E a segunda, mediante dados mais sensíveis e qualitativos, como a permissividade do carnaval, a música dançante e envolvente, a saborosa culinária, a receptividade de seu povo, entre outros. A brasilidade, na percepção de Da Matta, seria um estilo, um modo de ser, uma forma particular de construir e perceber a realidade.
A invenção da brasilidade, como todo processo de edificação nacional – para o pesquisador Hermano Vianna, autor do livro “O Mistério do Samba” (1995) –, passa a estabelecer como “puros” ou “autênticos” elementos que foram produtos de longas negociações. Segundo o autor, o “autêntico” é sempre artificial, mas, para ter eficácia simbólica, precisa ser encarado como natural. Concomitantemente, esse produto precisa ser preservado, de modo a resguardar também a “alma brasileira”. Nesse sentido, são criadas narrativas míticas sobre o surgimento de determinadas manifestações culturais, tais como o samba, no intuito de se tornar um dos elementos centrais na definição da identidade nacional.
Narrativas históricas são necessariamente construções discursivas que se referem a um tempo passado. Geralmente tais produções são edificadas em torno de temáticas selecionadas, elaboradas a partir de um recorte temporal e espacial, e referenciados em documentos, vestígios históricos, dados, pesquisas, outras narrativas (escritas e orais), e todo o tipo de informação que propicie análises, realizadas a partir da perspectiva sociocultural, econômica e até mesmo político-ideológica do autor. Nesse sentido, uma relevante consideração a ser feita é a de que inexiste neutralidade em uma narrativa histórica. A própria seleção do autor sobre o que considera historicamente expressivo, os temas e acontecimentos desprezados, a ordem e o encadeamento dos fatos, as análises sobre as quais o pesquisador se debruça com maior profundidade no intuito de atribuir um valor superior a determinado feito ou episódio – todos esses são elementos que engendram o complexo mecanismo de elaboração textual histórica.
Os processos de formação identitária do Brasil foram estruturados majoritariamente por três grandes vertentes culturais: a europeia (portuguesa), a africana (grupos bantos e sudaneses) e a indígena (atualmente organizada em cerca de trezentas etnias). As disputas culturais em território nacional, amplamente divulgadas pelas narrativas históricas dos últimos cinco séculos, desde a invasão portuguesa, não ocorreram de forma equânime e pacífica. Os processos de colonização e escravização dos povos ameríndios e de grupos afro-diaspóricos, sob o argumento civilizatório eurocêntrico, engendraram invisibilizações, silenciamentos, etnocídios e genocídios dessas populações minoritárias em nosso país.
Cabe enfatizar que, por longa data, narrativas musicológicas adotaram, como marco inicial dos relatos históricos sobre a música do Brasil, a chegada dos Jesuítas em solo nacional no século XVI (por exemplo no livro “História da Música no Brasil” de Vasco Mariz, publicado em 1980), deslegitimando e ignorando a música produzida por centenas de etnias indígenas, assim como suas epistemologias, perspectivas e saberes, presentes há séculos neste solo. Apesar desse cenário, constantes fusões e hibridismos culturais e artísticos foram gerados a partir da miscigenação desses eixos étnicos, revelando pluralidades, hierarquizações e resistências nas formas de pensar e de fazer música.
É possível afirmar que, após a Independência do Brasil em 1822, as tentativas de construção de uma identidade nacional se manifestaram de forma mais substancial no cenário das artes brasileiras. Durante o século XIX, o indianismo, compreendido como um movimento artístico que estabeleceu narrativas de elevação da imagem indígena, dominou a produção literária do Romantismo nacional no período. Essa corrente da literatura dissimulava um heroísmo mítico e um protagonismo desses povos na construção identitária nacional, escamoteando os processos de escravização, extermínio populacional, cultural, territorial e epistemológico por eles vivenciados. A escrita do livro “O Guarani” (1857), de José de Alencar, é um marco nessa produção, e repercutiu em uma das mais notórias óperas do romantismo musical brasileiro, “O Guarani” (1870), do compositor Carlos Gomes. A abertura da ópera foi, inclusive, incorporada posteriormente pelo reconhecido programa de rádio “A Voz do Brasil”, desde sua fundação em 1935.
Após 1889, com a Proclamação da República, o intuito de alguns teóricos em aprofundar e complexificar a trama identitária nacional se desenvolveu e tomou maiores proporções, tendo seu ponto culminante na Semana de Arte Moderna de 1922. O movimento vanguardista, em suas perspectivas modernas de devoração cultural antropofágica, retomou um resgate das culturas indígenas, negras e “mestiças”, e propôs experimentações estéticas e hibridismos entre elementos estrangeiros e nacionais em um movimento de ruptura com academicismos europeus. Para Mário de Andrade, em artigo publicado em 1939, a música brasileira deveria priorizar a busca de uma expressão nacional, e considerava a música popular a mais forte de nossas criações, e a caracterização mais bela de nossa raça. Outros intelectuais, como Oswald de Andrade, Câmara Cascudo e Renato Almeida, estavam alinhados à proposta nacionalista de Mário de Andrade, e enalteciam a música “folclórica” como a principal fonte de inspiração aos compositores eruditos, pois representava a “alma da nação”.
Longe da pretensão de encerrar um tema tão amplo em somente um artigo desta coluna, minha intenção foi apenas ressaltar alguns episódios e análises que contribuíssem para a compreensão do conceito de “brasilidade” na música nacional. Ainda assim, buscando aprofundar um pouco mais a discussão, optei por dividir o assunto em duas publicações na coluna “Som em Pauta”. Por fim, agradeço a atenção e o interesse do leitor em embarcar nessa jornada. Continuamos no próximo artigo: “A construção do conceito de ‘brasilidade’ em música – Da Era Vargas à Era dos Festivais de MPB”.
Leo Corrêa
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