Na semana passada, publiquei um artigo que narra uma aventura pela qual passei no principal cemitério de Petrópolis há alguns anos, no Dia de Finados. Na ocasião, disse que contaria outro episódio ocorrido comigo também numa necrópole. Vamos a ele.
A Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro é conhecida pelas praias, lojas descoladas, shoppings e por bairros que ganharam fama mundial como Copacabana, Ipanema, Leblon, Jardim Botânico e Lagoa. Curiosamente, essa tão badalada região só possui um cemitério: o São João Batista, no bairro de Botafogo. Lá estão os restos mortais de vários famosos, como as atrizes Marília Pêra e Yara Amaral, o cantor e compositor Cazuza, as cantoras Clara Nunes e Carmen Miranda e os atores Paulo Gracindo, Sérgio Cardoso e Jardel Filho. Lá também está o mausoléu dos “imortais” da Academia Brasileira de Letras (ABL) e o monumento aos pracinhas mortos na Segunda Guerra Mundial. Também estão enterrados lá nomes como Santos Dumont e Ruy Barbosa. Aliás, o lugar é um museu a céu aberto. Há centenas de esculturas confeccionadas por nomes famosos. Alguns túmulos são verdadeiras obras de arte. E há ainda, é claro, as milhares de sepulturas de gente anônima.
Já fui a alguns sepultamentos no São João Batista. Entre eles, o que narrarei a seguir.
Um grande amigo de minha mãe havia falecido. Ela me pediu, então, que eu descesse a serra (moro em Petrópolis) e fosse ao São João Batista representar a família. Sem problemas. Afinal, ele, esposa, filha e genro sempre nos receberam muito bem. Minha mãe, inclusive, passava algumas temporadas na casa dele. Tenho para com essa família uma relação de amizade também, e fui com todo o carinho dar o meu abraço.
Era o meio da semana. Dia seco de inverno. Temperatura amena no Rio de Janeiro. O enterro estava marcado para as 17h, se não me engano. A capela mortuária do São João Batista é composta de dois andares e há várias salas de velório. A entrada principal é à parte do cemitério e dá para a rua. Na lateral do segundo andar, onde estava sendo realizado o velório desse senhor amigo, há uma passagem que sai direto no campo santo.
Entrei pelo saguão principal. Havia uma capela lotada e muita gente à porta. Subi para o segundo andar e fui abraçar a família amiga. Havia pouquíssimas pessoas. A filha e o genro do falecido, duas senhoras amigas e mais duas moças que cuidavam dele. Fiz uma prece (a família é espírita) e ficamos aguardando a saída do féretro.
O relógio marcou 17h, 17h10, 17h20 e nada do pessoal encarregado do enterro aparecer. Pouco depois das 17h30, eles surgiram e pediram desculpas. O atraso era devido ao féretro que saíra da capela que eu vira lotada.
Suponhamos que o São João Batista seja em formato de cruz. Nós estávamos na ponta direita; o sepultamento seria na ponta esquerda. Como o local é imenso, andamos um bom pedaço. Passamos, inclusive, pelo final do corredor central, que é largo e comprido a perder de vista. É onde ficam os monumentos e túmulos portentosos que citei.
Quando o caixão baixou à sepultura, eu e o pequeno grupo viemos embora. Todos menos eu estavam de carro. Por isso, sairiam pela capela. Eu era o único a pé. Há um ponto de ônibus próximo ao portão central do São João Batista. Além disso, é mais fácil chegar ao metrô de Botafogo saindo por ele. Ao passarmos novamente pelo final do corredor central, rumo à ponta direita, me despedi do grupo e fui em direção ao imenso portão principal.
Lá ia eu caminhando calmamente quando me dei conta de que já passava das seis da tarde e começava a escurecer. Ou melhor, já havia escurecido. Olhei para frente, em direção ao portão. Estava fechado. As salas das luzes da administração do cemitério estavam apagadas. Olhei para trás; o pequeno grupo que me acompanhava já não estava mais ao alcance da minha vista. Olhei de novo para o portão e pensei: – Ele pode estar somente fechado, mas não estar trancado. Devo arriscar? E se estiver trancado? O caminho de volta à porta lateral da capela será mais longo, escuro e difícil de trilhar, já que eu não o conheço de cor. Se eu gritar para alguém do lado de fora pedindo para ir à capela pedir para me resgatarem, corro o risco de não me darem ouvidos ou de fugirem espavoridos, pensando que eu sou uma alma penada. Posso tentar pular a cerca, que é muito alta, mas vai ser um espetáculo e tanto para quem está na rua. Vai que alguém resolve chamar os bombeiros para me resgatar? Pior ainda! Isso tudo eu pensei num átimo de segundos. Ato contínuo, não pestanejei; dei meia volta e corri em direção ao grupo de quem me despedira. Não que eu estivesse com medo de gente morta. Mas não haveria o mínimo proveito em ficar perambulando por lá, enfrentando o labirinto de tumbas para achar a já sonhada porta lateral da capela mortuária. Além do mais, eu iria ficar lá dentro fazendo o quê? Isso sem falar que os fundos do cemitério dão para uma favela. Vai que uma turma menos recomendável resolve passear pelas quadras da necrópole na calada da noite e dá de cara comigo?
Como sou alto, tenho pernas compridas e sempre me exercito, alcancei meu pequeno grupo em três tempos e disse que era melhor sair com eles porque não sabia se o portão principal estava aberto. Quando finalmente chegamos à porta lateral da capela, uma surpresa: ela estava fechada. Em suma: eu, a filha e o genro do falecido, as duas acompanhantes e as duas senhoras amigas estávamos presos no São João Batista. – Pelo menos agora era um grupo grande; a aventura promete ser mais interessante – pensei.
Há um muro ao lado da capela. Ele dá para a rua. Eu e o outro elemento masculino do grupo, alto feito eu, debruçamo-nos no parapeito e avistamos a garagem da capela, no primeiro andar. Havia um carro funerário estacionado. E com o motorista ao lado! Chamamos por ele e dizemos: – Viemos acompanhar um enterro que atrasou e agora não podemos sair porque trancaram a porta da lateral da capela. Ele, então, pediu desculpas e disse que mandaria alguém para nos buscar.
Ficamos, então, à porta, esperando que viessem abri-la. Em vez disso, surgiu de dentro do cemitério um sujeito, que pediu para que o acompanhássemos. Demos a volta por algumas sepulturas e passamos, então, pela, digamos, saída de serviço do cemitério. Acho que era o ossuário. Dos dois lados, restos de caixão, ossos etc. Tudo muito aprazível, como manda a ocasião.
Quando me despedi dos demais, em vez de esperar o ônibus ou caminhar em direção ao metrô, peguei um táxi rumo à rodoviária, onde embarquei de volta para Petrópolis. Isso sem deixar de rir por dentro pelo acontecido.
Ainda bem que sou espirituoso e encarei a situação com bom-humor. Muita gente que eu conheço ficaria sem dormir uns três dias.
Marcelo Teixeira
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