Como a experiência e a formação em diversos campos do saber levou o poeta e professor universitário ao desafio de ser jurado no Grupo Especial: “Sempre quis estar aqui”.
O Carnaval 2025 já acabou. Será? Parece que não.
E o tema principal do momento, além da dança da cadeira dos profissionais de cada escola, é a avaliação feita pelos jurados. Que tal conhecermos um pouco da história de um deles?

Hoje quero te contar um pouco sobre Igor Fagundes, jurado de samba-enredo no Grupo Especial do Rio de Janeiro. Batemos um papo super descontraído, repleto de conhecimento e seriedade.
Igor é um apaixonado pelas artes em geral, com experiência em literatura, dança, teatro e música. Professor e pesquisador na UFRJ (inicialmente no campo das Letras e, depois, no campo das Artes Corporais), ele também é escritor com quase 20 livros publicados. O mais recente é Santo, lançando em 2024.
Para este artista que é, antes de tudo, um poeta detentor de cerca de 60 prêmios em literatura, os saberes artísticos, científicos e religiosos se conectam.
“Sempre estive na encruzilhada entre a cultura erudita, letrada, e a cultura popular, oral, corporal. Por isso escrevo como quem canta e dança. Leciono filosofia falando de macumba e pesquiso macumba como forma de filosofia”, declara.
É essa visão expandida de mundo que permite a Fagundes o trânsito entre a academia e a rua. E, se antes foi a criança que sonhou em ser carnavalesco, ele agora é o adulto que se realiza como julgador do maior espetáculo da Terra. Igor compartilhou conosco como foi sua preparação, expectativas e reflexões após concluído o trabalho.

REVISTA PÀHNORAMA - Foi seu primeiro ano como jurado no carnaval carioca. Como surgiu essa oportunidade?
IF - Eu sempre quis ser jurado de carnaval (risos). Sempre acompanhei, desde a infância, os desfiles das escolas de samba do Grupo Especial do Rio, desde as escolhas dos enredos e dos sambas-enredos até o desfile propriamente dito e a emoção da apuração. Devaneei que seria, no futuro, um carnavalesco, e nunca imaginei que, um dia, estaria do outro lado, como jurado. Mesmo tendo sido, em todos os anos da minha vida, uma espécie de jurado não oficial, na minha intimidade. Porém, nunca soube como proceder para me tornar, de fato, um. Até que surgiu uma oportunidade... No meio do ano de 2024, a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (LIESA) abriu uma chamada pública de currículos, no sentido de selecionar novos julgadores. Encaminhei o meu e disponibilizei-me para mais de um quesito, uma vez que transito entre diversos campos de formação e experiência. Não criei grande expectativa. Até que, em novembro, recebi a notícia de que fui selecionado. Em dezembro, fui entrevistado pelo presidente da LIESA, Gabriel David, junto com o coordenador do júri, Thiago Farias. Finalmente, no início de fevereiro, fui convocado. E a surpresa se tornou maior porque, dentre os 36 julgadores da LIESA, apenas 7 vagas foram renovadas. Eu ocuparia uma delas. Não conhecia previamente ninguém: o processo foi inteiramente idôneo. E, já em atividade no posto durante o Carnaval, recebi total autonomia para aplicar as notas que eu desejasse, sem interferência de nenhuma espécie, e lançando mão de um olhar técnico, atento, justo.
REVISTA PÀHNORAMA - Como foi sua preparação?
IF - Fiquei bastante ansioso. Queria que chegasse o desfile do dia 2 de março o mais rápido possível. Houve um curso na sede da LIESA, com todas as orientações necessárias para garantir que o trabalho fosse coerente e criterioso. Quinze dias depois, aconteceu o sorteio das posições de cada julgador, durante um jantar muito acolhedor.
Sempre acompanhei de perto o processo de escolhas e divulgações de enredos e sambas-enredos. Logo, estudar tudo isso já era um hábito e, também, um dever de casa já cumprido sendo ou não jurado. Os estudos e análises se intensificam quando recebemos o Manuel de Julgamento e o Livro Abre-Alas, uma espécie de dossiê de cada escola. Mas a avaliação se dá de modo mais decisivo é no aqui-agora dos desfiles.
REVISTA PÀHNORAMA - Ao ler os temas e os detalhes de cada escola, teve aquela que você ficou ansioso para ver como seria o desenrolar na avenida?
IF - Acho que foi o enredo inédito de ser jurado, sobre como ser um jurado neste carnaval. Este foi o enredo principal que eu queria ver escrito, narrado, contado. Como seria? Fiquei em um hotel isolado durante todo o desfile. Seguranças me acompanhavam fora das cabines. Aliás, estas cabines são lugares privilegiados, onde cada escola e especialmente alguns quesitos se exibem integralmente. No momento em que participo da entrevista, esse enredo nenhum acabou: estamos no momento da repercussão das justificativas das notas.
Sobre os enredos das escolas, cada um tem sua particularidade. Claro que podemos simpatizar mais com um do que com outro, mas, na hora de julgar, devemos equilibrar a subjetividade com a objetividade necessária.
Fiquei curioso sobre como determinados sambas-enredo iriam acontecer. Em alguns casos, o samba pode parecer ruim, mas ele se revela funcional na hora do desfile, trabalhado junto a outros quesitos, como os de Bateria e Harmonia.

REVISTA PÀHNORAMA - O carnaval do Rio é, sem dúvida, um grande espetáculo, onde podemos enaltecer nossa cultura brasileira e como também outras culturas. Pra você, qual a importância do carnaval como um todo?
IF - Há duas importâncias, no mínimo, aí. A primeira é que não se faz festa porque tudo vai bem. É justamente porque existe miséria, pobreza, tristeza, que é preciso fazer festa. Essa frase é de uma pessoa incrível, não mais presente entre nós, o Beto Sem Braço. A festa, então, tem uma força de transfiguração das dores cotidianas da humanidade. É um lugar de reunião, de restituição de laços, de pertencimento, de coletividade. Festa é co-memoração, ou seja, memorar junto. É produzir memória junto de, junto com. Nesse ponto, o carnaval é essencial como lugar de exacerbação da nossa liberdade, das nossas pulsões, sonhos, fantasias, esperanças. Do poder imaginativo e criativo que faz do ser humano este acontecimento incrível, apesar dos pesares.
E tem a segunda importância: o entendimento de que a noção de saber, de produção de conhecimento não pode ser restrita, nem reduzida ao que a ciência tradicional entende. Existem os livros, mas existem também os saberes das ruas, das sonoridades, dos corpos, sobretudo os não brancos. Somos educados a entender as coisas por meio das palavras. O carnaval nos chama à palavra e ao para-além da palavra: à voz das cores, dos movimentos, dos ritmos, dos sons.
No Carnaval, estamos diante de intelectuais populares das comunidades, das favelas, intelectuais sem diplomas, mas que são mestres, que são bambas. Cada um é um sábio, um bamba. De tanto que é bamba, vira bam-bam-bam. E macumba não é, no Carnaval, só um fundamento. Para além da dimensão religiosa, macumba é ciência. Uma forma sofisticada e encantada de ciência. De ciência que gera ciência: a do carnaval.

REVISTA PÀHNORAMA - Tendo em vista que estamos na era digital e em tempo real, o público reverbera todos os acontecimentos e têm voz nas redes sociais. Como você lida com eventuais críticas sobre suas notas?
IF - Eu saberia que aconteceria o choro livre, a reclamação geral, a inconformação, a repetição da lenda da roubalheira, o xingamento. No futebol, não é diferente. As pessoas são muito apaixonadas. Tento, com esforço, alcançar alguma serenidade. Não levar para o pessoal. Como é inédito para mim, a gente digere isso com todo o dissabor da primeira vez. Mas compensa o que essa mesma primeira vez presenteia de prazer, amadurecimento, oportunidade de aprendizagem como profissional, como ser humano, como alguém que é inevitavelmente um ser social.
REVISTA PÀHNORAMA - O Carnaval do Rio está passando por algumas transformações. Esse ano, por exemplo, foram 3 dias de desfile do grupo especial e os jurados precisavam entregar as notas por dia e não mais ao final de todas apresentações. Você acredita que essas mudanças foram positivas ou negativas?
IF - Positivas! A economia do Carnaval agradece. Ninguém saiu perdendo. Nem escola, nem plateia, nem espectador na televisão, nem a própria televisão. Nem o jurado, que pôde ter mais tempo e calma para escrever suas notas e justificativas. Cansativo sempre será. Mas pode ser mais produtivo. Além disso, entregar as notas no mesmo dia minimiza os efeitos da comparação.

REVISTA PÀHNORAMA - Se você pudesse dar um conselho para as escolas que não conseguiram gabaritar no samba-enredo, qual conselho daria?
IF - Eu tenho o maior respeito por quem cria, e dar conselhos a quem tem essa experiência anterior a mim pode soar arrogante. O que penso é precisamos preservar a memória do samba, do samba-enredo. O samba tem algo nele que faz com que ele seja o que é, mas, como tudo, o samba tem história e produz história. Isso quer dizer: o samba é sempre o mesmo e outro, é sempre identidade e diferença. Percebo que os sambas-enredo vão se acomodando – como tudo que faz parte da indústria cultural, esta que mercantiliza a cultura – em produtos que se acomodam em zonas de conforto para garantir o 10, repetindo as mesmas melodias, encontrando soluções de letras que já foram muito usadas e ficando demasiadamente presos a uma cartilha. Há espaço para um maior risco.
Do contrário, muita coisa que hoje existe não teria surgido. Foi preciso gente ousada, para trazer o novo. Sair desta zona de conforto e ir para o desconforto da zona, do sacode, é a batucada sempre necessária. Quando a gente começa a prever até a surpresa – nos sambas, nas comissões de frente, nas alegorias e fantasias... – tem algo de errado, de contraditório aí. E a gente vai à arte, à arte popular para ser surpreendido. E isso impacta na constante revisão e atualização dos critérios de julgamento. E tomara! Tomara que essa entrevista sobre o enredo de ser jurado dê samba! Ou seja: que bastante gente leia e comemore!
Lalinha.
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