Padre Júlio e a paisagem que incomoda

O Brasil inteiro acompanhou, nestes primeiros dias de 2024, a tentativa de um vereador da cidade de São Paulo – Rubinho Nunes (União Brasil) – de instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que visa investigar a atuação de Organizações Não Governamentais (ONGs) que atuam atendendo à população de rua da capital paulista, especialmente na Cracolândia, região que recebeu essa alcunha por aglutinar considerável quantidade de usuários da droga conhecida como crack.
O intuito real, no entanto, seria atingir Padre Júlio Lancelotti, que atua na área há cerca de 30 anos, levando a essa massa de excluídos não só o pão material, mas também o pão espiritual. Figura conhecida – e admirada – em todo o país, Pe. Júlio lidera a Pastoral do Povo da Rua. Ele é um sacerdote que realmente se importa com os socialmente carentes de tudo. Por isso, incomoda muita gente, principalmente os que preferem não ver os moradores de rua, que jazem esquecidos e propositalmente não percebidos nas calçadas ou debaixo de viadutos.
Devido à má repercussão, vereadores que antes haviam assinado o termo para a abertura da CPI voltaram atrás, o que, pelo menos até agora, torna inviável que a questão siga adiante. Fica latente, no entanto, o incômodo que Padre Júlio Lancelotti causa por tornar visíveis seres humanos que muitos cidadãos ditos de bem preferem não ver e fazem questão de evitar. E torna-se gritantemente visível como perturba ver em ação alguém que resolve ser cristão na mais pura e combativa essência da palavra.
Padre Júlio nos tira do lugar comum e mostra que é preciso arregaçar as mangas e ir ao encontro dos que foram alijados da engrenagem capitalista, selvagem e ultra neoliberal que vem assolando a humanidade há tempos. Em vez de simplesmente dar comida, ele come com os pobres. E também os ouve, os atende, conversa com eles e comunga com eles. Enfim, ele mostra que Jesus Cristo só se faz presente quando há partilha. Se o que predomina no “modus operandi” social são ganância, egoísmo e competividade, não há partilha. Por conseguinte, o amor ao próximo na forma de atenção, partilha e promoção social não encontra guarida no coração de homens e mulheres, que poderiam ser de boa vontade, mas preferem ter esse notável presbítero paulistano na conta de um ser indesejável por se preocupar com os indesejáveis. Tristes tempos!
Padre Júlio Lancelotti precisa de paz para continuar a exercer a nobre função que deveria ser de todos nós, a começar pelas autoridades do município de São Paulo. E quando falamos em paz, não estamos nos referindo à paz dos cemitérios, sempre tão plácida e quieta; mas sim à paz que é sinônimo de ação combativa e incansável para que este mundo seja um lugar justo, acolhedor e com oportunidades iguais para todos, literalmente.
Deixemos, portanto, Padre Júlio Lancelotti em paz!
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