[CRÍTICA] Ainda Estou Aqui: um golpe emocional que reafirma a urgência da memória histórica
- Manu Cárvalho
- 8 de nov. de 2024
- 3 min de leitura
LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho

O Brasil tem uma relação complexa com sua própria história. Muitas de suas feridas mais profundas ainda estão abertas, ignoradas ou negadas. Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, é um lembrete doloroso de que o passado nunca fica realmente para trás. Inspirado na história real de Eunice Paiva e sua luta para encontrar respostas sobre o desaparecimento de seu marido durante a ditadura militar, o filme entrega um soco no estômago que ressoa até os dias de hoje.
Mas será que, para além de sua importância histórica, Ainda Estou Aqui funciona como cinema?
A força e a dor de Eunice Paiva em Ainda Estou Aqui
No centro da narrativa está Eunice, interpretada de forma magistral por Fernanda Torres. A atriz entrega uma performance contida, sem excessos dramáticos, o que torna sua dor ainda mais palpável. Cada olhar, cada silêncio e cada hesitação carregam o peso de uma vida inteira de incertezas. Seu sofrimento não é explícito, mas se manifesta nas pequenas ações do dia a dia: na forma como segura uma xícara de café com as mãos trêmulas, no olhar distante ao encarar a porta da casa esperando uma volta que nunca acontece, no esforço constante para se manter forte pelos filhos.
Selton Mello, no papel de Rubens Paiva, tem menos tempo de tela, mas sua presença fantasmagórica ecoa durante toda a projeção. Sua ausência é sentida não apenas por Eunice, mas pelo próprio espectador, que acompanha sua história por meio de memórias, cartas e objetos deixados para trás. O elenco coadjuvante também merece destaque, trazendo interpretações naturais e impactantes que reforçam o realismo da história.

Direção e escolhas narrativas: o peso do silêncio
Walter Salles, conhecido por sua abordagem sensível e realista, evita qualquer traço de sensacionalismo. Ele opta por uma narrativa fragmentada, alternando entre o presente e o passado, o que reforça a atemporalidade da dor de Eunice. A direção cuidadosa transforma detalhes cotidianos em cenas de profundo impacto emocional: fotografias antigas, cartas nunca respondidas e memórias invadindo os espaços vazios da casa.
A cinematografia contribui para essa sensação de perda contínua. A paleta de cores é fria e melancólica, evocando um Brasil sufocado pela censura e pela incerteza. O uso de câmera na mão em momentos de maior tensão nos coloca na pele da protagonista, enquanto planos fechados enfatizam seu isolamento.
Outro acerto está na direção de arte e no figurino, que recriam com precisão a atmosfera dos anos 1970, desde a ambientação das casas até os detalhes dos objetos de cena. Essa reconstrução histórica, aliada ao som diegético bem trabalhado, nos transporta para a época retratada, tornando a experiência ainda mais imersiva.
A trilha sonora minimalista acerta ao não reforçar o drama de forma óbvia, deixando que os silências falem por si. Quando a música entra, é de maneira cirúrgica, ampliando o impacto emocional sem soar manipulativa.

Ritmo e impacto emocional
Apesar de sua imensa força emocional, Ainda Estou Aqui exige paciência do espectador. A repetição de cenas que enfatizam a burocracia e a indiferença institucional pode parecer excessiva, mas ao mesmo tempo reforça a angústia e a luta interminável de Eunice.
O impacto do filme é inegável. A forma como Walter Salles traduz o luto e a persistência de Eunice em sua busca por justiça resulta em uma obra emocionalmente devastadora, mas necessária.
Outro ponto alto é a habilidade do roteiro em costurar os silêncios e os momentos de tensão sem recorrer a exposições didáticas. O público sente o que precisa sentir sem que tudo seja explicado diretamente, o que demonstra um grande respeito pela inteligência do espectador.
O longa se insere dentro de uma linhagem do cinema brasileiro que busca resgatar memórias históricas, como O Que é Isso, Companheiro? e Batismo de Sangue, mas com um olhar mais intimista. Enquanto esses outros filmes abordam a repressão de forma mais ampla, Ainda Estou Aqui foca no impacto silencioso, mas devastador, da perda pessoal e na luta incansável por respostas.

Um filme necessário, belo e doloroso
No saldo final, Ainda Estou Aqui é uma experiência cinematográfica poderosa, que faz jus às atuações impecáveis e à direção sensível de Walter Salles. Sua fotografia, direção de arte e atuações criam um retrato autêntico e doloroso de uma história que precisa ser contada.
Ainda que seu ritmo exija entrega do espectador, sua beleza está na forma como equilibra o peso da memória e a esperança de justiça. Poucos filmes brasileiros conseguem traduzir com tanta potência a importância de lembrar para que não se repita.
Ao final da projeção, fica a pergunta: quantos outros ainda esperam por justiça?
Nota: ★★★★★
Título Original: Ainda Estou Aqui
Direção: Walter Salles
Duração: 2h 15min
Gênero: Drama, Suspense
Ano: 2024
Classificação: 14 anos
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