[CRÍTICA] Desconhecidos: o jogo mortal da percepção em um thriller que inverte a lógica do medo
- Manu Cárvalho
- 4 de abr.
- 5 min de leitura
LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho

Desconhecidos (Strange Darling), lançado nos cinemas brasileiros em 3 de abril de 2025, chega como uma lufada de ar fresco no gênero do suspense e terror psicológico. Dirigido por J.T. Mollner, com atuações intensas de Willa Fitzgerald e Kyle Gallner, o longa é tudo menos convencional. Ele desconstrói expectativas, confunde o espectador e nos convida a participar de um quebra-cabeça moral e emocional que só se completa nos minutos finais.
Ao mesmo tempo brutal e reflexivo, Desconhecidos desafia o gênero ao tirar o foco da violência em si e colocá-lo sobre as construções de identidade, gênero e culpa. É um thriller que subverte clichês, empurra o público para fora da zona de conforto e entrega mais do que uma história sobre serial killers: oferece uma meditação intensa sobre o poder da narrativa e da percepção.
A trama: uma noite, duas histórias e um lugar no meio do nada
O ponto de partida é simples: um homem e uma mulher se encontram para um suposto encontro casual. Eles viajam juntos até uma cabana remota nas florestas do Oregon, onde a relação rápida e instável entre eles se transforma em um jogo de sobrevivência. Mas o que parece ser uma narrativa clássica de "homem perigoso versus mulher indefesa" logo é virado de cabeça para baixo.
Dividido em seis capítulos apresentados fora de ordem cronológica, o roteiro exige atenção total do espectador. A montagem não é apenas um recurso estilístico, mas um elemento fundamental para a construção do suspense e da dúvida. Cada fragmento de cena traz uma nova peça ao tabuleiro, revelando que nada é exatamente como parecia.
Willa Fitzgerald: um furacão de ambiguidades
No papel de "A Dama", Willa Fitzgerald entrega uma atuação arrebatadora. A personagem, cujo nome real nunca é revelado, começa como uma figura que evoca empatia imediata: uma mulher em situação de perigo, cercada por um homem agressivo e manipulador. Mas conforme a história avança, surgem nuances que a distanciam desse arquétipo.
Fitzgerald equilibra fragilidade e frieza com maestria. Ela passa de vítima a estrategista sem nunca se tornar uma caricatura. Sua presença em tela é hipnotizante, e cada gesto, olhar e silêncio é carregado de tensão. Ao final, sua personagem se revela como a verdadeira protagonista de uma narrativa que parecia girar em torno de outra figura.
Kyle Gallner: charme perigoso em sua forma mais crua
Kyle Gallner, interpretando "O Demônio", representa o arquétipo do predador carismático. Seu personagem mistura charme e ameaça com naturalidade desconcertante. Em cenas onde está em controle, sua presença é sufocante. Mas assim como a Dama, o Demônio também ganha camadas inesperadas.
Gallner é excelente ao manter o público dividido entre o medo e a curiosidade. Não sabemos se ele é um manipulador calculista ou uma vítima do próprio narcisismo. Essa ambiguidade torna sua atuação uma das mais impactantes do gênero em anos recentes.

Narrativa não linear: quebra-cabeça que desafia o espectador
A divisão em capítulos e a desordem cronológica são mais do que uma ousadia estilística: elas são essenciais para o impacto emocional do filme. J.T. Mollner sabe que o terror mais eficaz é aquele que nasce da dúvida, da desorientação moral. Quando somos forçados a questionar o que vemos e sentimos, o medo se torna pessoal.
Cada nova cena recontextualiza a anterior. Momentos de violência ganham significados diferentes conforme mais informações vão sendo reveladas. Essa estrutura cria uma sensação constante de inquietação: estamos sempre dois passos atrás da verdade.
Fotografia e estética: o terror visual de um mundo real
Filmado em 35mm, com direção de fotografia de Giovanni Ribisi, o longa aposta em uma estética granulada, com cores saturadas e luz natural. A paisagem do Oregon ganha um ar de sonho febril, onde a natureza é ao mesmo tempo bela e opressiva.
O uso de longos planos e a ausência de música em cenas-chave aumentam a tensão. Há um desconforto constante em observar os personagens sem mediação. O espectador é transformado em testemunha silenciosa de atos brutais e de pequenos momentos de humanidade. É nessa dualidade que o filme brilha.
Temas centrais: gênero, violência e narrativas de poder
Um dos aspectos mais poderosos de Desconhecidos é sua abordagem sobre o papel do gênero nas narrativas de terror. Desde Psicose a O Silêncio dos Inocentes, o gênero de um personagem costuma ditar sua posição na história: homens caçam, mulheres fogem. Aqui, essas regras são postas em xeque.
O filme também questiona a ideia de "verdade" e "vítima". Ao mostrar como nossas percepções são moldadas por cortes, enquadramentos e escolhas de narrativa, ele coloca o espectador em uma posição desconfortável, onde é preciso reconhecer os próprios preconceitos.

Reviravolta final: um soco no estômago
Sem spoilers, é preciso dizer que o final de Desconhecidos é uma virada de mesa. Quando achamos que entendemos tudo, o último capítulo entrega uma revelação que muda completamente o peso de cada cena anterior. E o faz sem apelar para o choque barato: a reviravolta é coerente, plantada desde o início, mas habilmente escondida.
Essa é uma das raras obras onde rever o filme é quase uma obrigação. Com o conhecimento da revelacão final, cada detalhe ganha nova luz. É um filme que se expande na memória, que incomoda e convida à releitura.
Recepção da crítica: aclamação merecida
Com 91% de aprovação no Rotten Tomatoes, Desconhecidos foi celebrado por sua originalidade e coragem. Críticos como Peter Debruge (Variety) e David Ehrlich (IndieWire) destacaram a atuação de Fitzgerald como uma das mais impactantes do ano, e o roteiro de
Mollner como um exemplo raro de suspense inteligente e provocador.
A produção também conquistou o Festival de Veneza 2024, onde recebeu aplausos de pé e um prêmio especial do júri por inovação narrativa. Foi comparado a filmes como Corra! e Garota Exemplar por sua capacidade de misturar gênros e desafiar as expectativas do público.

Conclusão: um novo clássico do terror contemporâneo
Desconhecidos é muito mais do que um suspense sobre um encontro que deu errado. É uma investigação sobre o poder da história, sobre como contamos e interpretamos os papéis de vítima e vilão. É um filme sobre medo, mas também sobre resistência. Sobre como às vezes a verdadeira arma não está na mão, mas no controle da narrativa.
Com atuações corajosas, direção precisa e um roteiro que respeita a inteligência do público, J.T. Mollner entrega um filme que será discutido, analisado e revisitado por anos. Uma obra que nos lembra que, no cinema, o terror mais profundo é aquele que revela algo sobre nós mesmos.
Nota final: ⭐⭐⭐⭐ (4/5)
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