[CRÍTICA] EROS (2025): o Brasil vai ao motel, mas quem entra é o afeto
- Manu Cárvalho
- 12 de jun.
- 5 min de leitura
LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho

O que acontece quando a porta de um quarto de motel se fecha, mas uma câmera continua ligada? Em Eros, documentário dirigido por Rachel Daisy Ellis, essa pergunta não é respondida com voyeurismo ou julgamento, mas com delicadeza, coragem e escuta.
Lançado em 12 de junho de 2025, o longa mergulha na intimidade de pessoas reais, comuns, que aceitaram filmar suas experiências em motéis pelo Brasil, revelando muito mais do que seus corpos: seus medos, desejos, silêncios, risos e verdades.
Eros é o tipo de obra que desarma. À primeira vista, seu tema pode causar estranhamento — afinal, o universo dos motéis ainda é cercado por tabus, preconceitos e risos nervosos.
Mas, com o passar dos minutos, o que se revela na tela é de uma humanidade tão palpável que não é possível sair da sessão do mesmo jeito que se entrou. Porque esse não é um filme sobre sexo. É um filme sobre pessoas.
O Brasil dos lençóis e espelhos: retrato de um país que se ama (ou tenta)
O ponto de partida de Eros é simples e profundamente ousado: convidar casais, trios e até pessoas sozinhas para registrarem suas experiências em motéis. Cada um deles recebeu uma câmera, entrou em uma suíte e ficou livre para viver — e mostrar — o que quisessem.
O resultado é uma colcha de retalhos intimista de vivências que revelam não apenas os corpos, mas os abismos e as pontes entre eles.
Tem o casal que tenta reacender a chama após anos de casamento. O trisal que ensaia uma coreografia de afetos e ciúmes. A mulher lésbica que só quer dançar para si mesma no espelho. O homem solo que conversa com seu reflexo como quem tenta fazer as pazes com o próprio desejo. E tem o silêncio. E o riso. E o choro que vem sem aviso, porque às vezes o que se vive entre quatro paredes diz mais do que mil palavras.
Essas histórias são costuradas com cuidado pela montagem de Matheus Farias, que sabe quando cortar, quando permanecer, e — principalmente — quando calar. Há sequências longas em que nada acontece além de olhares. Mas é justamente nesses momentos que Eros nos prende. Porque há algo profundamente verdadeiro em ver o outro ser, sem roteiro, sem performance.
Rachel Daisy Ellis: uma diretora que abre espaço — e não invade
A sensibilidade de Eros não está apenas na frente da câmera, mas sobretudo atrás dela. Rachel Daisy Ellis, atriz, cineasta e mãe de três filhos, idealizou o projeto a partir de uma frustração pessoal: um encontro íntimo num motel que não saiu como ela esperava. Em vez de engavetar a dor, ela a transformou em arte — e mais do que isso, em escuta coletiva.
Sua direção é ética, empática e radicalmente amorosa. Eros nunca se torna um zoológico de corpos. Nunca há um olhar intrusivo. O que vemos ali é o outro se olhando, e se permitindo ser olhado. E o que Rachel faz é construir o espaço para que isso aconteça com dignidade.
Aliás, um dos grandes trunfos do documentário é justamente o fato de que a própria diretora não entra nos quartos. Ela não entrevista, não interfere, não manipula. E, com isso, entrega um tipo de intimidade que raramente o cinema consegue alcançar — justamente por se manter à distância.

A diversidade que habita o quarto
Ao todo, Eros reúne sete casais, um trisal e um homem solteiro. São pessoas de diferentes idades, gêneros, orientações sexuais e dinâmicas afetivas. Há casais hétero que falam da rotina, da maternidade, da perda do desejo. Há uma mulher que vive um relacionamento com dois homens e tenta equilibrar amor e tesão. Há casais LGBTQIA+ que discutem tabus e limites. Há praticantes de BDSM que, surpreendentemente, são os mais carinhosos entre si.
Essa diversidade não é panfletária. Ela simplesmente está lá, como está na vida. E isso, por si só, já é revolucionário. Ver corpos gordos fazendo sexo com prazer. Ver homens chorando. Ver mulheres desejando sem culpa. Ver pessoas negras falando sobre afeto. Tudo isso é, no Brasil de hoje, um ato político.
Eros mostra que não existe uma forma única de viver a sexualidade. E que cada pessoa carrega, na pele, uma história que merece ser escutada. Mesmo quando a voz falha. Mesmo quando o prazer não vem. Mesmo quando o espelho mostra algo que a gente ainda não sabe aceitar.
Motéis: templo do prazer ou esconderijo da verdade?
O cenário de Eros não é neutro. Os motéis brasileiros, com seus espelhos no teto, camas giratórias e luzes vermelhas, são quase personagens no filme. Eles representam a dualidade do erotismo nacional: ao mesmo tempo em que são vistos como espaços de liberdade, também carregam o peso do preconceito e da clandestinidade.
Mas Eros transforma esse ambiente. Ali, o quarto deixa de ser um palco de performance para se tornar espaço de cura. Muitos dos depoimentos mais tocantes do filme acontecem deitados, entre lençóis. São declarações de amor, desabafos sobre autoestima, segredos guardados há anos. Porque quando o mundo fecha a porta, o que sobra é o que somos de verdade.
A câmera, entregue aos próprios participantes, capta tudo com crueza e beleza. Não há filtro. Não há embelezamento. Mas há uma estética — uma estética da verdade. E essa é a mais poderosa de todas.

Sexo, sim. Mas com contexto, com escuta, com afeto
Não se engane: Eros não é um filme sobre pornografia. Embora o sexo esteja presente — sim, ele aparece —, ele nunca é mostrado como espetáculo. O foco nunca está no ato em si, mas no que ele diz sobre os sujeitos que o vivem.
E é por isso que Eros incomoda tanto quanto emociona. Porque ele desafia o espectador a olhar para o sexo com outros olhos. Não como consumo. Não como performance. Mas como linguagem. Como diálogo. Como uma forma — entre tantas — de existir com o outro.
Do Brasil para o mundo: reconhecimento e relevância internacional
A estreia mundial de Eros aconteceu na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, com recepção calorosa. Logo depois, o documentário foi selecionado para o CPH:DOX, um dos mais prestigiados festivais de documentários do mundo, em Copenhague. Lá, foi aplaudido por sua abordagem sensível, por sua coragem estética e por sua capacidade de universalizar o íntimo.
Em um mundo onde a hipersexualização convive com o puritanismo, Eros se posiciona como um respiro. Um lembrete de que o corpo não precisa ser censurado — mas que merece ser respeitado.
EROS (2025) é sobre você, mesmo quando você não está na tela
Ao sair da sessão de EROS (2025), é difícil não pensar em si mesmo. No seu corpo. Nos seus desejos. Nos silêncios que você guarda. Nas conversas que nunca teve. No toque que faltou. Na coragem que ainda falta.
Eros é um espelho — às vezes generoso, às vezes brutal. Mas sempre honesto. E, talvez por isso, tão necessário.
Num Brasil onde o corpo ainda é um campo de batalha — seja pela política, pela religião ou pelo mercado —, este documentário oferece algo raro: um espaço para que sejamos, simplesmente, humanos.
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