[CRÍTICA] Filhos (Vogter): um confronto moral tão claustrofóbico quanto inevitável
- Manú Cárvalho

- 29 de jul.
- 4 min de leitura
Atualizado: 31 de jul.
LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho

Eva Hansen (interpretada magistralmente por Sidse Babett Knudsen) é uma agente penitenciária dedicada, idealista e maternal em sua conduta diária. Ela acredita na reabilitação humana, organiza práticas de yoga e meditação para os presos e trata cada um pelo nome. Mas todas essas certezas desmoronam quando Mikkel (Sebastian Bull Sarning), o homem que matou seu filho anos antes, é transferido para a mesma prisão — e, secretamente, para o mesmo bloco onde Eva trabalha.
A trama, coescrita por Gustav Möller (diretor) e Emil Nygaard Albertsen, parece simples na superfície, mas contém uma profundidade moral poderosa. Möller já havia revelado sua habilidade para criar drama psicológico intenso com The Guilty (2018); aqui, ele amplia essa competência ao conduzir a narrativa sem recorrer à violência explícita, mas sim a uma crescente tensão de silêncios, olhares e gestos carregados de significado emocional.
A crítica internacional destaca Sidse Babett Knudsen como o ponto alto do filme: “uma atuação tão impressionante que merecia um prêmio no Festival de Berlim”. E há mérito nisso. Seu rosto é uma paisagem emocional: dor, culpa, raiva e tristeza se misturam em expressões contidas que dizem tanto quanto diálogos inteiros. Seu papel — de vencedora da série Borgen ao centro emocional de um thriller – é construído com sutileza e poder dramático.
Sebastian Bull, por sua vez, encarna Mikkel com uma fisicalidade brutal e uma emotividade contida lançando entre incerteza e perigo súbito. O jogo entre os dois personagens evolui até se tornar uma dança tensa de poder psicológico, onde ambas as figuras se espelham –, mãe e filho, vítima e acusado, vítima com sede de justiça. O contraste entre suas performances sustenta toda a narrativa.
Visualmente, Filhos (Vogter) acerta com sua estética claustrofóbica: enquadramentos apertados, paleta frias, som metálico das grades e portas ecoando pelos corredores. A fotografia mantém um aspecto quase documental, enquanto a atmosfera drena o calor emocional do espaço, refletindo a tensão interna da protagonista.
O uso do som é particularmente notável. O silêncio abrupto que envolve Eva ao ver Mikkel pela primeira vez domina a cena, evidenciando seu colapso emocional instantâneo. O barulho das chaves e grades realça quase uma tortura sensorial planejada — o som se torna personagem no filme.
Críticos também apontam que o enredo deixa a revelação-ofensa do vínculo entre Eva e Mikkel aparecer cedo demais, deixando de lado a surpresa como recurso narrativo — embora a força da atuação e da ambientação compensem esse desgaste dramático. Há ainda questionamentos sobre plausibilidade: falhas nos protocolos prisionais são visíveis, mas escusadas em função do ritmo da narrativa.
Alguns textos, como o do IndieWire, comentam que o final, embora impactante, enfraquece parte da crítica ao sistema penitenciário ao não oferecer uma reflexão social mais aguda, transformando o filme quase exclusivamente em um duelo psicológico. Mesmo assim, outros analistas elogiam a coragem do longa em manter a ambiguidade moral até o fim: não há vilões claros, apenas pessoas quebradas lidando com consequências irreversíveis.
Há interpretações que destacam os lacunas narrativas, como o uso de clichês e soluções narrativas convenientes no segundo ato, mas conseguem reconhecer o impacto emocional de diretoria e atuações. A recepção geral em agregadores indica aprovação moderada (cerca de 75–80 %) mas com reconhecimento unânime ao poder das performances e da direção.
Com base nesses elementos, minha análise detalhada leva em conta o mérito do longa como um estudo de personagem que questiona até onde a busca por justiça pode corroer os próprios valores. Eva representa o paradigma de alguém que começa com fé no sistema, mas se perde nele ao se permitir manipular o poder que tem para infligir dor ao outro — e com isso entra em contradição com sua própria humanidade.
O contraste entre Eva e Mikkel expõe temas como vingança como forma distorcida de amor materno e a falência das instituições de reabilitação. Möller guia o espectador nesse campo minado com delicadeza e frieza, mas nunca com distanciamento. Cada decisão de Eva impacta não apenas Mikkel, mas seu ambiente profissional e emocional, criando uma teia moral difícil de desfazer.
A forma como o relacionamento entre os dois evolui — de controle cortado por subtrações cotidianas como negar cigarros ou cartas ao isolamento emocional — é descrito por críticos como “guerra psicológica meticulosamente cronometrada”. Essa escalada traz à tona uma verdade universal: quando a vítima se torna agente, ela se aproxima do que condena.
É difícil assistir às cenas finais sem questionar: quem realmente está preso — Mikkel nas celas ou Eva em sua consciência? O desfecho, ambíguo e silente, evita resoluções fáceis. Ele deixa uma pergunta dissolvendo-se em ar: afinal, a justiça dentro de uma prisão é apenas autoengano institucional?
TRAILER OFICIAL:
Em essência, Filhos é superior não por ser um thriller clássico, mas por apostar no desconforto moral. Ele desafia o espectador a ponderar sobre culpa, poder e perdão enquanto nos deixa respirar — ou sufocar — dentro da cela emocional de Eva Hansen.
Considerando a qualidade técnica, a densidade psicológica e o impacto emocional das performances, vejo Filhos (Vogter) como uma obra exemplar do cinema psicológico contemporâneo: firme nas intenções, afiada nas nuances, exigente no olhar.
Nota final: ⭐⭐⭐⭐✨ (4,5 de 5,0)




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