[CRÍTICA] Lee: um retrato íntimo da fotógrafa de guerra Lee Miller
- Manu Cárvalho
- 19 de dez. de 2024
- 5 min de leitura
LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho
Nota: ★★★

O cinema tem o poder de revelar histórias esquecidas e dar voz a figuras históricas que moldaram o mundo de maneiras muitas vezes subestimadas. Lee, dirigido por Ellen Kuras, busca fazer exatamente isso ao trazer para as telas a extraordinária trajetória de Elizabeth "Lee" Miller. Interpretada magistralmente por Kate Winslet, Miller foi muito mais do que uma modelo de sucesso; ela foi uma artista, uma rebelde e, mais do que tudo, uma testemunha da história. Durante a Segunda Guerra Mundial, sua câmera capturou imagens icônicas que expuseram a brutalidade do conflito, tornando-se um dos registros mais poderosos daquele período.
Mas quem foi, de fato, Lee Miller? O filme não se limita a narrar sua trajetória profissional, indo além para revelar as complexidades de sua personalidade, os traumas que carregava e as contradições que marcaram sua vida. Lee nos apresenta uma mulher que, mesmo enfrentando um mundo predominantemente masculino, recusou-se a ser definida pelas expectativas da sociedade. Essa cinebiografia, no entanto, também enfrenta desafios narrativos, e a questão que se coloca é: o filme consegue fazer justiça ao legado de sua protagonista?

Da passarela às trincheiras: a transformação de Lee Miller
A vida de Lee Miller foi marcada por transformações radicais. Inicialmente, ela se destacou como modelo na efervescente cena da moda parisiense, sendo descoberta por ninguém menos que Condé Nast. No entanto, Miller rapidamente se cansou das limitações impostas pela indústria e buscou algo que realmente despertasse seu espírito inquieto.
A transição para a fotografia aconteceu sob a influência do surrealismo e da convivência com artistas como Man Ray, com quem manteve uma relação intensa e criativa. Mas foi com a eclosão da Segunda Guerra Mundial que seu trabalho encontrou um propósito maior. Tornando-se correspondente de guerra para a Vogue, Miller desafiou as normas de gênero da época e se lançou em uma jornada que a levou para o front europeu. Suas imagens de cidades devastadas, prisioneiros de campos de concentração e soldados exaustos trouxeram à tona uma visão honesta e impactante da guerra.
O filme retrata essa transição com sensibilidade e atenção aos detalhes. Vemos Miller lutando para ser levada a sério em um ambiente dominado por homens, enfrentando a descrença de superiores e a hostilidade daqueles que não aceitavam a presença de uma mulher documentando o horror do campo de batalha. A diretora Ellen Kuras acerta ao dar espaço para que essa luta seja mostrada sem exageros, permitindo que a história de Miller fale por si mesma.
A performance de Kate Winslet: uma imersão na complexidade de Miller
Se há um elemento que sustenta Lee, esse elemento é a atuação de Kate Winslet. Com uma carreira repleta de performances memoráveis, Winslet mais uma vez entrega um trabalho impressionante. Sua interpretação de Miller é cheia de nuances: vemos sua determinação inabalável, seu senso de humor afiado, mas também suas fragilidades e os traumas que carregava. Winslet capta a essência de uma mulher que viveu intensamente, mas que também foi consumida pelo peso do que testemunhou.
Em uma das cenas mais marcantes, acompanhamos Miller visitando os campos de concentração de Dachau e Buchenwald. Winslet transmite a angústia e o choque de sua personagem sem recorrer a grandes gestos ou discursos emocionados. Sua expressão, seu olhar vazio, a maneira como ela segura sua câmera – tudo comunica a profundidade do impacto que aquele momento teve sobre ela.
Além disso, o filme não ignora os aspectos mais contraditórios da personalidade de Miller. Sua relação com o álcool, seus romances conturbados e sua tendência a se afastar emocionalmente daqueles que mais amava são apresentados sem julgamento, mas também sem a romantização que muitas biografias cinematográficas costumam adotar. Winslet se entrega completamente ao papel, tornando Miller uma figura real, com defeitos e virtudes.

Direção e narrativa: entre acertos e desafios
A diretora Ellen Kuras faz sua estreia na direção de um longa-metragem de ficção com Lee. Conhecida por seu trabalho como diretora de fotografia em filmes como Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, Kuras traz um olhar apurado para a composição visual, algo que se reflete na belíssima cinematografia do filme. As cenas que recriam os campos de batalha são particularmente impactantes, evocando a crueza das imagens capturadas por Miller.
No entanto, o roteiro, assinado por Liz Hannah, apresenta alguns desafios. O filme segue uma estrutura linear que, por vezes, se mostra convencional demais para uma personagem tão fora do comum. Embora a história seja cativante, há momentos em que a narrativa se arrasta, especialmente em suas tentativas de incluir informações biográficas de maneira expositiva. Algumas relações fundamentais, como sua amizade com Picasso e seu casamento com Roland Penrose, poderiam ter sido mais exploradas para aprofundar ainda mais a complexidade da protagonista.
Outro ponto que divide opiniões é o tom do filme. Lee oscila entre uma abordagem contemplativa e sequências de grande intensidade emocional. Essa variação pode ser uma escolha deliberada para refletir a dualidade da personagem, mas em alguns momentos a transição entre essas tonalidades parece abrupta, prejudicando o ritmo da história.
Aspectos técnicos: recriando uma era
Se há algo indiscutível sobre Lee, é a qualidade de sua ambientação. A direção de arte e a fotografia fazem um trabalho excepcional na recriação dos cenários, transportando o público para as décadas de 1930 e 1940 com um nível de detalhamento impressionante. A paleta de cores acompanha a evolução emocional da protagonista, com tons mais vibrantes no início de sua carreira e uma atmosfera mais fria e sombria conforme a guerra avança.
A trilha sonora, composta por Alexandre Desplat, adiciona um toque melancólico e contemplativo à narrativa, sem jamais se tornar invasiva. A escolha de manter a música sutil reforça a sensação de introspecção e permite que a força das imagens fale por si só.

Recepção crítica: divisões e convergências
Desde sua estreia, Lee tem recebido críticas mistas. Enquanto muitos elogiam a performance de Winslet e a importância do filme em dar visibilidade ao trabalho de Lee Miller, outros apontam falhas na estrutura narrativa e no desenvolvimento de personagens secundários. Alguns críticos consideram que o filme poderia ter se arriscado mais, explorando aspectos menos convencionais da vida de Miller em vez de seguir uma estrutura biográfica tradicional.
Ainda assim, há consenso em relação à relevância da história contada. Lee se destaca por trazer à tona uma mulher cuja contribuição para o jornalismo de guerra foi monumental, mas muitas vezes esquecida. Para o público, especialmente aqueles interessados em fotografia, história e biografias, o filme oferece uma experiência instigante e emocionalmente impactante.
Uma homenagem necessária, apesar das imperfeições
Lee é uma cinebiografia que, apesar de algumas limitações narrativas, cumpre seu papel ao apresentar ao público a trajetória fascinante de uma mulher que desafiou convenções e documentou a história de forma inigualável. Com uma atuação excepcional de Kate Winslet e uma direção visualmente primorosa, o filme nos leva a refletir sobre o papel do fotojornalismo na guerra e sobre o preço de testemunhar o horror de perto.
Para aqueles que buscam uma obra que combina história, arte e um olhar profundo sobre o ser humano, Lee é um filme que merece ser visto. Sua protagonista pode ter passado a vida capturando imagens, mas, com este filme, sua própria história finalmente ganha o foco que merece.
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