[CRÍTICA] LIMONOV: O CAMALEÃO RUSSO — um homem, mil faces e uma balada sem heróis
- Manu Cárvalho
- 18 de abr.
- 5 min de leitura
LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho

Retratar a vida de Eduard Limonov é tarefa árdua até para os mais ousados cineastas. Poeta underground, exilado soviético, mordomo de milionários, combatente nos Bálcãs, escritor celebrado e líder político controverso — Limonov era tudo isso e talvez mais. Em “Limonov: O Camaleão Russo”, que estreou nos cinemas em 17 de abril de 2025, o diretor Kirill Serebrennikov escolhe não domesticar esse caos. Ele o abraça. E, ao fazer isso, nos entrega uma obra tão instável quanto fascinante.
Baseado no livro de não ficção “Limonov”, de Emmanuel Carrère, o filme é uma biografia estilizada e fragmentada, que mistura realidade, delírio e performance para construir o retrato de um homem que nunca quis ser lido com facilidade. Com Ben Whishaw no papel principal, a produção não tenta explicar Limonov — e talvez aí esteja seu maior acerto.
Entre a poesia e a pólvora: a vida como espetáculo político
Eduard Limonov nasceu na Ucrânia soviética, sobreviveu à dureza do pós-guerra, migrou para Moscou, e ali construiu sua persona provocadora. Poeta de vanguarda, colecionava prisões e aplausos. Mais tarde, foi morar em Nova York, onde trabalhou como mordomo de bilionários, e escreveu sobre sua experiência num estilo cru e transgressor.
Nos anos 1990, foi para Paris e virou queridinho da intelectualidade francesa — apenas para depois se tornar miliciano nos Bálcãs, apoiador de Radovan Karadzic e defensor de posições ultranacionalistas. Na Rússia pós-soviética, fundou o Partido Nacional Bolchevique, enfrentou o regime de Putin e acumulou novos anos de prisão. Limonov foi amado e odiado com a mesma intensidade.
O filme não segue linha cronológica. Kirill Serebrennikov opta por uma estrutura de capítulos que se alternam entre tempos, lugares e emoções. Às vezes somos apresentados ao Limonov-escritor. Em outras, ao Limonov-marginal, amante, órfão ou oportunista. Não há julgamento moral direto — há ambiguidade.

Ben Whishaw: uma atuação que incomoda e hipnotiza
Conhecido por sua habilidade de transitar entre o lírico e o perturbador, Ben Whishaw encontra em Limonov um território fértil para explorar todas as nuances da contradição. Desde a postura corporal até a entonação de voz, sua interpretação nos faz esquecer o ator. Whishaw se transforma em Limonov — não o homem real, mas a sua projeção mítica, criada por si mesmo e por quem tentou narrá-lo.
Whishaw caminha entre o carisma e o grotesco. Ele nos faz rir quando Limonov debocha do sistema, mas também nos obriga a desviar os olhos quando seu personagem age de forma violentamente egocêntrica. Ele não suaviza os gestos nem tenta tornar o protagonista simpático. E justamente por isso, sua atuação é memorável.
O olhar de Serebrennikov: fragmentação como forma de verdade
Kirill Serebrennikov é um diretor conhecido por sua sensibilidade visual e por tratar seus personagens com lente desconstrutiva. Em “Limonov: O Camaleão Russo”, ele cria uma estética fragmentada que reflete a própria vida do biografado. Cenas são filmadas em diferentes formatos — desde Super 8 até digital ultramoderno — alternando entre preto e branco e cores saturadas, em uma espécie de colagem audiovisual que desafia a linearidade.
A direção utiliza a linguagem teatral em alguns trechos, o realismo documental em outros e, em certos momentos, mergulha em alucinações. A sensação é de que estamos dentro da mente de Limonov, e não apenas diante da sua história.
A montagem é nervosa, dinâmica, quase ensaística. O que parece caos no início, revela-se um quebra-cabeça que só faz sentido ao final — e mesmo assim, com peças que faltam, propositalmente.
Uma biografia que se recusa a ser hagiografia
Filmes biográficos costumam pecar pelo excesso de reverência. Ou então pelo esforço de “limpar” a trajetória de seus protagonistas para caber em uma narrativa inspiradora. Serebrennikov, no entanto, não está interessado em hagiografar Limonov. O longa escancara suas incoerências, sua arrogância, sua busca por poder e validação a qualquer custo.
O filme não suaviza sua proximidade com figuras de extrema-direita nem seus flertes perigosos com ideologias totalitárias. Também não esconde seus traços de vaidade artística e narcisismo. Ao mesmo tempo, deixa transparecer sua dor, sua infância solitária, sua necessidade desesperada de ser visto.
É esse equilíbrio entre denúncia e compaixão que torna o filme ético, mesmo quando retrata um personagem que, muitas vezes, parece agir sem qualquer ética.

Narrativa e ritmo: um balé político de espelhos quebrados
“Limonov: O Camaleão Russo” exige do espectador um certo nível de entrega. Não é um filme feito para quem busca uma história fechada, com começo, meio e fim bem definidos. É uma obra que prefere os ruídos às resoluções.
O ritmo alterna momentos de energia explosiva com trechos contemplativos. Há cenas de combate nos Bálcãs que se sucedem a leituras de poesia. Há entrevistas inventadas, monólogos diretos à câmera e até sequências oníricas que funcionam como alegorias do ego do personagem. O filme é, em essência, um ensaio audiovisual sobre identidade, poder e representação.
As mulheres no mundo de Limonov: espelhos, não protagonistas
Um dos aspectos mais controversos do filme — e da própria figura de Limonov — é a forma como as mulheres aparecem em sua vida. No longa, elas são retratadas majoritariamente como projeções do desejo ou como catalisadoras de fases específicas da trajetória do protagonista.
A atuação de Viktoria Miroshnichenko, que interpreta Natasha, a musa nova-iorquina e esposa de Limonov, é delicada e contundente. Mesmo limitada pelo roteiro a um espaço que orbita o herói, ela consegue transmitir frustração, força e amor em igual medida. Outras mulheres surgem, mas são sempre secundárias — o que, embora seja um retrato fiel da forma como o próprio Limonov se colocava, pode incomodar o público contemporâneo.
Cenografia, figurino e trilha sonora: ambientação sem glamour
A cenografia do filme é marcada por uma opção crua. Não há filtros de nostalgia nem embelezamento da decadência. A Nova York dos anos 80 é suja, fria, hostil. A Moscou pós-soviética é cinzenta, silenciosa, opressora. Os campos de batalha nos Bálcãs são retratados com tom documental, quase sem música.
O figurino ajuda a marcar as transformações de Limonov. Dos ternos mal cortados à estética punk, passando pelas roupas militares e os trajes de escritor consagrado, cada fase é marcada visualmente com precisão, mas sem afetação.
Já a trilha sonora, que mescla composições originais com canções da época (punk russo, jazz francês, hinos soviéticos remixados), acompanha o tom errante do filme e não tenta suavizar os altos e baixos. Ela é dissonante como o próprio protagonista.

Uma história sobre o que a Rússia foi, é — e talvez continue sendo
Assistir a "Limonov: O Camaleão Russo" em 2025 é um ato político. Em um momento de recrudescimento de regimes autoritários, de perseguições ideológicas e de revisionismos históricos, a trajetória de Eduard Limonov funciona como espelho e advertência.
Ele é o filho de uma pátria dividida, o produto de uma cultura que flerta com extremos. Um homem que foi de esquerda a direita, da vanguarda à repressão, da arte ao populismo. Seu percurso não é linear — mas é profundamente russo. E o filme entende isso, sem jamais fazer concessões à simplificação.
LIMONOV: O CAMALEÃO RUSSO - Uma balada de contradições
“Limonov: O Camaleão Russo” não é um filme para conforto. Ele provoca, desagrada, fascina. Ao nos apresentar um personagem que se recusava a caber em definições, ele nos obriga a encarar a complexidade do ser humano. Em tempos de discursos rasos e biografias redentoras, a honestidade ambígua de Serebrennikov é bem-vinda.
Mais do que um retrato, o filme é uma balada — como sugere seu título original — cheia de dissonâncias, de notas cortadas e versos que não rimam. E, como toda boa balada, ela permanece ecoando por um bom tempo depois que termina.
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