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[CRÍTICA] NÃO SOU NADA – o cine enigma que da vida ao labirinto de Fernando Pessoa

  • Foto do escritor: Manú Cárvalho
    Manú Cárvalho
  • 18 de abr.
  • 5 min de leitura

LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho

O que nos torna inteiros? Podemos ser muitos e, ainda assim, sermos um só?
O que nos torna inteiros? Podemos ser muitos e, ainda assim, sermos um só? (Foto: Reprodução / YouTube)

Há filmes que nos guiam de mãos dadas. Outros, que nos jogam no meio de um vendaval de imagens e ideias, e nos desafiam a encontrar algum sentido no caos. "Não Sou Nada – The Nothingness Club", de Edgar Pêra, é do segundo tipo. E talvez por isso mesmo, seja tão arrebatador.


Estreando nos cinemas brasileiros em 17 de abril de 2025, o longa não é uma cinebiografia convencional de Fernando Pessoa, tampouco uma adaptação de suas obras. É uma provocação estética e filosófica. Um mergulho profundo – e desconcertante – na mente fragmentada de um dos maiores poetas da língua portuguesa. É também um lembrete doloroso de que a genialidade, muitas vezes, mora na solidão, no silêncio e no embate constante com a própria existência.


O Clube do Nada: onde os heterônimos ganham carne e voz

Na narrativa de Edgar Pêra, o "Clube do Nada" é uma redação surrealista, habitada não por jornalistas ou redatores, mas pelos heterônimos de Fernando Pessoa. Em longas mesas de madeira, figuras como Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro trabalham com afinco em suas máquinas de escrever, como se estivessem redigindo os delírios do próprio Pessoa em tempo real.


Esse espaço não é apenas um cenário. É uma metáfora viva da mente do poeta. Um lugar onde múltiplas vozes disputam espaço, onde não existe centro, apenas dispersão. E onde a chegada de uma mulher – que evoca Ofélia Queiroz, o único amor conhecido de Pessoa – desestabiliza a rotina, provocando uma reordenação das palavras, dos afetos e das obsessões.


Edgar Pêra: o diretor que transforma cinema em pensamento

Conhecido por seu cinema experimental e avesso à linearidade, Edgar Pêra entrega aqui talvez seu projeto mais ousado. Inspirado em anos de pesquisa sobre Pessoa e com um roteiro coescrito com Luísa Costa Gomes, o diretor opta por uma narrativa que emula a fragmentação do poeta. Os diálogos, quase todos compostos de frases reais extraídas da obra pessoana, ganham novos sentidos quando reencenados neste universo onírico.


Ao invés de explicar Fernando Pessoa, Pêra prefere apresentá-lo como um sistema em colapso. Seu filme é um anti-filme: sem trilha sonora tradicional, sem progressão dramática óbvia, sem arco narrativo resolvido. A linguagem é de sensações, de silêncios e de ruídos, como se estivéssemos dentro de um poema que ainda está sendo escrito.

O espectador é convidado a refletir sobre identidade, multiplicidade, ego e alteridade
O espectador é convidado a refletir sobre identidade, multiplicidade, ego e alteridade. (Foto: Reprodução / IMDb)

Miguel Borges e os outros: quem é Pessoa quando todos falam por ele?

Miguel Borges, no papel do Fernando Pessoa "real", nos entrega uma performance quase silenciosa. O poeta, ao contrário dos seus heterônimos expansivos, é um homem retraído, quase apagado. Ele não precisa dizer muito: seus olhos carregam um abismo. É uma atuação que exige do público a capacidade de ler gestos mínimos, expressões contidas, pausas demoradas. E vale cada segundo.


Já os heterônimos são interpretados por um elenco afiadíssimo. Albano Jerónimo, como Álvaro de Campos, é pura inquietação. Explosivo, verborrágico, quase insuportável – como o engenheiro naval que tudo sente em excesso. Ricardo Reis, interpretado com rigidez quase clínica por António Fonseca, contrasta com essa efusividade. E Alberto Caeiro, vivido por Pedro Lacerda, nos convida à contemplação filosófica.


No meio deles, Victoria Guerra, como a mulher que representa Ofélia, não entra para completar o grupo – entra para desconstruí-lo. Sua presença carrega erotismo, desafio e ternura. E nos lembra que, por trás de tantos nomes e máscaras, existia um homem tentando amar.


Estética e ambientação: o labirinto visual da mente de um gênio

O visual de “Não Sou Nada” é um espetáculo à parte. Filmado em uma antiga fábrica em Vila das Aves, durante a pandemia, o longa usa o espaço industrial para criar um ambiente que parece suspenso no tempo. Mescla de redação, sanatório e templo do pensamento, o Clube do Nada é sombrio, iluminado apenas por abajures, e dominado por um cenário monocromático que por vezes nos lembra o expressionismo alemão.


A fotografia de Eduardo Serra alterna entre planos abertos e opressores e closes sufocantes. É como se o próprio enquadramento nos dissesse: "você não vai escapar desse labirinto". E não escapamos.


Os figurinos respeitam a época, mas também brincam com a atemporalidade. As roupas parecem saídas de uma peça de teatro moderno, sem nunca perder o pé na década de 1930. Tudo é cuidadosamente pensado para que a ambientação não distraia, mas potencie a sensação de deslocamento.

Ele não exige que você entenda cada referência, mas que se entregue ao fluxo.
Ele não exige que você entenda cada referência, mas que se entregue ao fluxo. (Foto: Reprodução / La Mostra De Valencia)

Entre o poético e o psíquico: quando o filme vira espelho

“Não Sou Nada” não quer entreter. Não quer agradar. Quer provocar. E para isso, Edgar Pêra recorre à própria poética de Pessoa: o filme é construído como se fosse um dos livros do autor – repleto de trechos, vozes, interrupções, contradições. A estrutura é caótica, mas jamais gratuita.


Ao longo do filme, o espectador é convidado a refletir sobre identidade, multiplicidade, ego e alteridade. O que nos torna inteiros? Podemos ser muitos e, ainda assim, sermos um só? Ou, como diz o próprio Pessoa, “tenho em mim todos os sonhos do mundo, mas sou só um sonho de mim”?


O longa nos obriga a olhar para dentro. A confrontar nossos próprios heterônimos – as versões de nós mesmos que escondemos, que encenamos, que tememos.


Trilha sonora do nada: quando o som é silêncio

Ao contrário da maioria dos filmes que usam trilhas para guiar o espectador, “Não Sou Nada” aposta em uma sonoridade minimalista. Os sons ambientes – o teclar das máquinas, o ranger das cadeiras, a respiração pesada – ganham protagonismo. Em algumas cenas, o silêncio é tão marcante que parece gritar.


Quando a música aparece, é pontual. Quase sempre dissonante. A ideia é desconstruir qualquer expectativa de harmonia. Porque neste clube, onde os pensamentos colidem, o ruído é mais verdadeiro que a melodia.


Recepção crítica e o desafio ao espectador comum

Lançado originalmente no Festival de Roterdã, o filme dividiu opiniões. Não poderia ser diferente. Críticos europeus destacaram sua ousadia formal, sua potência filosófica e sua capacidade de transformar literatura em linguagem visual. No Brasil e em Portugal, o longa chegou com menos alarde, mas aos poucos foi ganhando status de “experiência obrigatória” entre cinéfilos.


Para o espectador menos familiarizado com Pessoa, o filme pode parecer hermético. Mas essa é também sua força: ele não exige que você entenda cada referência, mas que se entregue ao fluxo. Como um poema que não se explica, apenas se vive.

É cinema feito de palavras. De silêncios. De vertigem. E, sobretudo, de humanidade.
É cinema feito de palavras. De silêncios. De vertigem. E, sobretudo, de humanidade. (Foto: Reprodução / YouTube)

“Não Sou Nada – The Nothingness Club”: Um cinema que não quer respostas, só mais perguntas

“Não Sou Nada – The Nothingness Club” não é um filme fácil. É uma travessia. Mas, como toda boa travessia, transforma quem se dispõe a atravessá-la. Ao explorar a vida interior de Fernando Pessoa com tanto respeito e ousadia, Edgar Pêra entrega ao público uma obra que honra o poeta sem jamais tentar domesticá-lo.


É cinema feito de palavras. De silêncios. De vertigem. E, sobretudo, de humanidade. Porque, no fundo, todos nós temos um clube do nada dentro de nós. E, talvez, todos sejamos um pouco como Pessoa: muitos, solitários, e em eterna busca por sentido.


Nota final: ⭐⭐⭐⭐ (4/5)

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