top of page

[CRÍTICA] NIKI (2025): A dor, a cor e a mulher por trás da revolução artística

  • Foto do escritor: Manu Cárvalho
    Manu Cárvalho
  • 11 de abr.
  • 5 min de leitura

LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho

É uma história sobre como sobreviver quando tudo — inclusive o corpo — tenta nos destruir.
É uma história sobre como sobreviver quando tudo — inclusive o corpo — tenta nos destruir. (Foto: Reprodução / Rotten Tomatoes)

Poucos filmes são capazes de tocar uma ferida tão profunda com tanta delicadeza. Niki, dirigido pela estreante Céline Sallette, é um desses raros exemplos onde o cinema não apenas narra, mas sente. Mais do que uma cinebiografia, o longa lançado em abril de 2025 é um mergulho sensorial e íntimo na mente e no corpo de Niki de Saint Phalle, a artista franco-americana que transformou a dor em forma, a fúria em cor, e o trauma em criação.


Com uma performance impactante de Charlotte Le Bon, o filme não segue a cartilha convencional das biopics. Não está preocupado com marcos históricos, reconhecimento ou consagração. Niki está interessado em outra coisa: nos momentos entre o que se cala e o que explode. É um retrato de mulher que se pinta por dentro, com sangue, tinta e coragem.


Uma história que pulsa no tempo das emoções

A narrativa nos conduz à década de 1950, período em que Niki, fugindo do conservadorismo e da rigidez norte-americana pós-guerra, chega a Paris — não em busca de glória, mas de fuga. De um país que a sufocava, de uma família que a silenciava, e principalmente, de um passado que se recusava a cicatrizar.


É nesse solo fértil — ainda marcado pelos escombros da guerra, mas pulsante de inquietação artística — que ela começa a se reinventar. Não como musa, não como esposa, mas como criadora. E mais: como mulher artista em um mundo de homens que a observam como objeto, mas nunca como igual.


A diretora Céline Sallette acerta ao não tentar “explicar” Niki. O filme não oferece respostas, e sim sensações. Há cenas inteiras em que nenhuma palavra é dita, mas a respiração da personagem grita. Em um cinema cada vez mais obcecado por linearidade, Niki aposta na fragmentação — e sai vitorioso.

O ritmo do filme é contemplativo
O ritmo do filme é contemplativo (Foto: Reprodução / Af french film festival)

Charlotte Le Bon: uma entrega que transforma silêncio em grito

Há momentos em que a câmera apenas repousa sobre Charlotte Le Bon. E isso basta. A atriz canadense, mais conhecida por trabalhos em produções leves e comédias românticas, entrega aqui a atuação mais corajosa e visceral de sua carreira. Sua Niki é cheia de contradições: frágil e poderosa, inerte e vulcânica, sensual e ferida. Ela transborda.


É com o olhar que Charlotte narra os capítulos mais duros da vida de Saint Phalle: o abuso que sofreu ainda menina, o aprisionamento familiar, o exílio emocional e criativo. Ela transforma cada pincelada de cor em uma tentativa desesperada de ressignificar a dor.


Quando finalmente vemos a artista jogando tinta contra as telas em seus famosos “tir shootings”, sentimos que ela está atirando contra o passado. E contra tudo que tentaram fazer dela.


Céline Sallette: uma diretora que sabe escutar com a imagem

Dirigir um filme sobre uma artista visual — sem poder mostrar suas obras por questões legais — poderia ser um desafio sufocante. Mas Céline Sallette, atriz consagrada e agora diretora, transforma essa limitação em potência. Ao invés de mostrar as esculturas e pinturas de Niki, ela filma como se fosse uma obra dela.


A fotografia é carregada de texturas, cores saturadas e enquadramentos ousados. Os planos são ora angustiantes, ora libertadores. O som, cuidadosamente construído, guia o espectador por dentro da psique da protagonista. Há momentos em que a tela parece respirar com ela — acelerando nas crises, silenciando nos colapsos.


E talvez seja exatamente por isso que o filme emociona tanto. Porque não é uma visita ao museu, mas um mergulho no ateliê da alma.

Nunca é coadjuvante de si mesma
Nunca é coadjuvante de si mesma (Foto: Reprodução / AWFJ)

Paris como espelho e prisão

A cidade das luzes aparece em Niki como um personagem à parte. Não a Paris romântica das comédias francesas, mas a Paris do cinza urbano, dos ateliês escondidos, dos cafés com fumaça, dos olhares julgadores. É nesse cenário que a artista tenta se construir.


Ela enfrenta o machismo dos críticos, o descaso dos colegas artistas e a constante tentativa de enquadrá-la como “mulher do escultor Jean Tinguely” — papel que ela recusa com veemência. O filme mostra com precisão como Niki teve que, literalmente, criar espaço para existir como autora.


É nessa Paris contraditória que ela também encontra apoio em outras mulheres, em amantes improváveis, em psicanalistas falhos e, principalmente, em si mesma.


O corpo como suporte da arte — e da resistência

Uma das escolhas mais belas de Niki é assumir o corpo como eixo narrativo. O filme mostra a artista em sua relação íntima com o próprio corpo — ferido, exausto, sensível, mas sempre presente. Charlotte Le Bon nunca sexualiza essa entrega. Pelo contrário. Seu corpo em cena é símbolo de resistência, memória e criação.


A protagonista sangra, treme, trepa, dança e adoece. Mas nunca é coadjuvante de si mesma. Ao longo da trama, ela encontra no gesto de pintar, esculpir e atirar tinta, uma forma de reivindicar autonomia. É como se dissesse: “vocês não terão mais poder sobre minha história — agora, eu escrevo com as próprias mãos.”


Estética, música e ritmo: a arte dentro da arte

Com fotografia assinada por Claire Mathon (de Retrato de uma Jovem em Chamas), o filme é visualmente deslumbrante mesmo sem mostrar as obras originais da artista. A câmera dança com a personagem, mas também a observa em sua solitude.


A trilha sonora, assinada por Delphine Malausséna, mistura instrumentos clássicos com ruídos experimentais. Há silêncio onde deveria haver som — e som onde se espera silêncio. Tudo funciona como camada narrativa.


O ritmo do filme é contemplativo, e isso pode incomodar espectadores mais acostumados à velocidade dos blockbusters. Mas Niki é uma experiência — e como toda obra que se propõe a sentir, ela pede entrega.

O filme não oferece respostas, e sim sensações
O filme não oferece respostas, e sim sensações (Foto: Reprodução / Movies)

Recepção crítica: divisões, prêmios e aplausos

Selecionado para a mostra “Un Certain Regard” no Festival de Cannes 2024, Niki causou reações diversas. Muitos aplaudiram de pé a ousadia estética e a performance de Charlotte Le Bon. Outros criticaram a ausência das obras como um fator que "esvazia" o filme para quem não conhece a trajetória da artista.


Mas talvez o maior trunfo do longa esteja exatamente aí: em não tentar explicar Niki, mas em tentar senti-la. O filme é como as esculturas dela: cheias de curvas, cores berrantes, texturas desconfortáveis e beleza bruta.


NIKI (2025) : Uma obra que arde, como toda arte verdadeira

Ao final de NIKI (2025), o espectador não sai com respostas, mas com perguntas. O filme não é didático, e isso é libertador. Ele confia na inteligência emocional de quem assiste. Ele desafia. Ele acolhe.


É uma história sobre como sobreviver quando tudo — inclusive o corpo — tenta nos destruir. É sobre como a arte pode ser o último refúgio de quem não tem mais nada. E é, acima de tudo, um filme sobre uma mulher que se recusou a ser moldada por um mundo que só sabia destruir.


Niki não é um filme para se assistir distraidamente. É um filme para se viver. Para se sentir com a pele. Para se guardar no peito. Porque, como dizia a própria artista: “A dor é uma bênção disfarçada. E a arte, minha salvação.”


Nota final: ⭐⭐⭐⭐⭐ (5/5)

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
bottom of page