[CRÍTICA] STELLA: VÍTIMA E CULPADA — quando a sobrevivência se transforma em silêncio e dor
- Manu Cárvalho
- 20 de jun.
- 5 min de leitura
LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho

Em tempos de guerra, há histórias que parecem absurdas demais para serem verdade. E há pessoas, como Stella Goldschlag, cuja existência desafia os limites do julgamento moral.
No drama histórico “Stella: Vítima e Culpada”, dirigido por Kilian Riedhof, acompanhamos uma dessas histórias. Uma história em que o rótulo de heroína nunca coube — e o de vilã, ainda que cruel, tampouco explica.
Estreando nos cinemas brasileiros em 19 de junho 2025, o longa alemão propõe uma abordagem inquieta e profundamente emocional sobre uma das figuras mais ambíguas da Segunda Guerra Mundial. Inspirado na vida real da jovem judia que se tornou colaboradora da Gestapo em troca da sobrevivência da própria família, o filme evita respostas fáceis e nos convida, cena a cena, a encarar a face humana do impensável.
A Berlim que canta jazz enquanto caminha rumo à escuridão
A primeira metade do longa nos apresenta à Stella adolescente, interpretada com uma beleza silenciosa e profundidade por Paula Beer. Vivendo com os pais em Berlim no início da década de 1940, Stella é apresentada como uma jovem cheia de sonhos: ela quer ser cantora de jazz, quer amar, quer dançar e cantar em clubes que, logo, se tornarão silenciosos por ordem do regime.
O que torna esses momentos iniciais tão potentes é a forma como Riedhof nos mostra a esperança sem cair em idealizações. A juventude de Stella é marcada por restrições crescentes: a estrela de Davi costurada na roupa, os insultos nas ruas, os olhares de desprezo de antigos colegas de escola. E, ao mesmo tempo, ela ainda canta. Ainda acredita.
Essa tensão entre uma cidade que pulsa arte e o avanço de um sistema de extermínio é retratada com sutileza. O espectador sente que algo terrível está vindo — mas Stella, ainda não.
Uma escolha impossível: salvar a família ou trair a própria comunidade
O ponto de virada do filme — e da vida de Stella — acontece quando ela e os pais são capturados. Torturada, aterrorizada e convencida de que poderia poupar seus pais de um destino pior, ela aceita colaborar com a Gestapo. Sua tarefa: entregar outros judeus escondidos em troca da promessa de proteção.
O que se segue é uma sucessão de traições, remorsos e colapsos internos que o filme trata com frieza narrativa e calor emocional. Stella não é pintada como vítima passiva, nem como monstro desumano. É um ser humano estraçalhado pela pressão de um tempo que não oferecia saída.
A complexidade desse dilema é tratada com delicadeza no roteiro de Marc Blöbaum e Jan Braren, que recusam o tom de tribunal e apostam em uma dramaturgia de aproximação. Em vez de cenas explicativas ou maniqueísmos, o espectador acompanha os silêncios, os olhares, as pausas. E entende, sem palavras, o tamanho da tragédia.

Paula Beer: um corpo que carrega a guerra por dentro
A performance de Paula Beer é um espetáculo silencioso. Ela não precisa de grandes discursos para nos fazer sentir o terror, a culpa e o torpor que invadem Stella à medida que suas escolhas ganham consequências devastadoras.
Há uma cena específica — quando Stella visita, em segredo, um velho amigo que ela acabara de entregar à polícia — em que Beer chora sem lágrimas. Sua expressão vazia é mais comovente do que qualquer grito. Ela nos faz acreditar que Stella não é nem inocente nem cruel, mas alguém que foi empurrada para além dos próprios limites.
Beer repete aqui a intensidade que já demonstrou em "Undine" e "Frantz", mas com uma carga emocional ainda mais densa. Sua atuação sustenta o filme — e a torna, inevitavelmente, inesquecível.
Roteiro e direção: entre a memória e o julgamento
O diretor Kilian Riedhof conduz a narrativa com maturidade. Sabendo que tem nas mãos uma história real que ainda divide opiniões, ele evita posicionamentos enfáticos. Em vez disso, convida o espectador a ocupar um lugar desconfortável: o de quem não sabe o que faria em uma situação parecida.
O roteiro aposta em uma estrutura não linear. A vida de Stella é apresentada em fragmentos: a juventude esperançosa, os dias sombrios de colaboração, a prisão após a guerra, os interrogatórios, os anos de isolamento. A montagem cria uma sensação de memória quebrada — como se estivéssemos vasculhando uma mente marcada pelo trauma.
E isso funciona. Porque “Stella: Vítima e Culpada” não quer nos ensinar uma lição. Quer nos fazer lembrar que, em guerras, ninguém sai limpo.
A fotografia da vergonha e a trilha sonora do silêncio
Benedict Neuenfels, diretor de fotografia, constrói imagens que refletem o horror sem glamourizá-lo. A Berlim do filme é fria, cinza, vazia. Os poucos momentos de cor surgem em cenas do passado, como lembranças que insistem em permanecer doces mesmo quando já sabemos o que virá.
As cenas de rua são filmadas com uma certa distância, o que reforça a sensação de vigilância constante. Já os interiores — especialmente os porões e escritórios da Gestapo — têm uma opressão quase claustrofóbica, que nos sufoca junto com a personagem.
A trilha sonora de Peter Hinderthür aposta em composições discretas, muitas vezes interrompidas por silêncios incômodos. O jazz, tão presente nos sonhos de Stella, aparece distorcido, triste, como se a própria música também estivesse sendo perseguida.

As faces da culpa: vítima, cúmplice, sobrevivente
O título brasileiro do filme é certeiro: Stella é vítima e culpada. A grandeza da obra está em não tentar resolver essa ambiguidade. Há momentos em que a vemos como uma jovem corrompida pelas circunstâncias. Em outros, sua racionalização das ações soa fria demais para ser desculpável. Ela entrega amigos, vizinhos, até conhecidos da infância.
Mas há também a mãe. O pai. A promessa de que, se colaborasse, eles seriam poupados.
Quando essa promessa se revela falsa — como tantas promessas feitas por regimes totalitários — Stella já está completamente enredada em uma teia de delação e paranoia.
É cruel assistir à destruição emocional da personagem. Mas é necessário. Porque Stella não foi a única. E o que o filme propõe é um exercício de empatia que não justifica, mas tenta compreender.
Uma história real que continua ecoando
Stella Goldschlag existiu. Após a guerra, foi julgada por traição. Mais tarde, reconstruiu parte de sua vida, escreveu sobre sua experiência, mas nunca se reintegrou verdadeiramente à comunidade judaica. Morreu em 1994, após anos de depressão e isolamento.
Sua figura ainda é controversa em Israel, na Alemanha, na diáspora. Há quem a veja como símbolo de fraqueza moral. Outros, como exemplo extremo da perversidade de um sistema que obrigava vítimas a se tornarem verdugos.
O filme não altera os fatos. Mas os ilumina com humanidade — o que, talvez, seja a forma mais honesta de revisitar o passado.
Stella é cada um de nós — se estivéssemos no pior dos tempos
“Stella: Vítima e Culpada” não é um filme para assistir e esquecer. Ele não é feito para nos entreter, mas para nos provocar. Em tempos de discursos simplistas, maniqueísmos políticos e revisionismos históricos perigosos, o longa de Kilian Riedhof nos lembra que a história é feita por pessoas reais, em situações inimagináveis.
A trajetória de Stella Goldschlag é incômoda, mas necessária. Porque, ao encará-la, somos obrigados a confrontar não apenas os fantasmas do passado — mas também os mecanismos de poder, medo e silêncio que ainda insistem em nos assombrar.
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