Marcelo Teixeira
Certa vez, publiquei nas redes sociais uma crônica sobre cenas que havia testemunhado ao longo de uma semana. Tudo começou quando, numa tarde de sábado, no centro espírita do qual faço parte – União Municipal Espírita de Petrópolis (Umep) – observei, no meio do salão lotado, um casal feliz. Ambos abraçados e aconchegados, comentando carinhosamente um com o outro o que estavam achando da palestra a que assistiam. A moça era negra; o rapaz, branco. Fitava ambos com satisfação. Ver gente que passa por cima de preconceitos para ser feliz é sempre um presente.
Dias depois, tive de ir à Cidade Maravilhosa resolver um assunto profissional. No ônibus no qual viajei na ida, sentados próximos a mim, um casal gay. Dois rapazes de mãos dadas, serenos, felizes por se gostarem, apreciando a paisagem e sem serem molestados ou censurados. Outra felicidade bonita de se ver.
No meio da semana, circulava eu pela Av. Köeler, uma das mais bonitas de Petrópolis, quando outro casal feliz passou por mim. Um rapaz negro e uma moça loira. Ambos também de mãos dadas e conversando alegremente. Em dado momento, ele disse algo engraçado, ela riu e os dois se abraçaram sorridentes, enquanto caminhavam.
Quando publiquei as três histórias, Cláudia Ribeiro, então minha colega de trabalho, postou um comentário com uma frase que nunca mais esqueci:
– Gente feliz não perturba ninguém! – Por isso, resolvi voltar ao assunto, inclusive para atestar que Claudinha tem razão.
A doutrina espírita esclarece que a felicidade absoluta é impossível em nosso mundo. Por quê? Porque é um mundo imperfeito. Estamos às voltas com nossas próprias limitações e também com problemas que dificultam o bem-estar coletivo. O orgulho, o egoísmo e a ganância fazem surgir violência, exploração de mão-de-obra, repressão, miséria, devastação ambiental, entre outros males de uma lista extensa, bem o sabemos.
No entanto, podemos ser felizes dentro das nossas limitações. É o que esclarecem as questões 920 e 921 de “O livro dos espíritos”, de Allan Kardec.
920. Pode o homem gozar de completa felicidade na Terra?
Não, pois a vida lhe foi dada como prova ou expiação. Dele, porém, depende a suavização de seus males e o ser tão feliz quanto possível na Terra.
921. Concebe-se que o homem será feliz na Terra, quando a humanidade estiver transformada. Mas enquanto isso não se verifica, poderá conseguir uma felicidade relativa?
O homem é quase sempre o obreiro da sua própria infelicidade. Pela prática da lei de Deus, a muitos males pode forrar-se, proporcionando a si mesmo felicidade tão grande quanto comporte a sua existência grosseira.
A vida, diz a obra, nos foi dada como prova ou expiação. Estamos aqui para provarmos a nós mesmos que somos capazes de dar conta de corpo físico, profissão, família, orientação sexual etc. E também para saldarmos eventuais débitos de vidas passadas, desenvolvermos potencialidades, aprimorarmos talentos... Tudo isso para que venha à tona aquilo que temos de melhor e nem sempre percebemos pelo fato de sermos envolvidos pelo turbilhão dessa vida agitada e cheia de contrastes que vivemos.
Mesmo assim, dá para sermos felizes dentro das possibilidades que o mundo oferece. Podemos suavizar nossa passagem por aqui e sermos tão felizes quanto possível. Afinal, se praticarmos a lei de Deus, evitaremos muitos males e seremos relativamente felizes.
Se o ser o humano não desse vazão a tantos preconceitos, por exemplo, poderíamos ser bem mais felizes, embora não totalmente. Digo isso tendo como ponto de partida o episódio envolvendo o príncipe britânico Harry, neto da Rainha Elizabeth, e sua esposa, a americana Megan Markle. O casal se afastou da Inglaterra e foi morar nos Estados Unidos. O motivo seria racismo, já que Megan, para os padrões da realeza britânica, não é branca, tampouco Archie, o filho do casal.
Se o assunto causou espanto em algumas partes do mundo, provavelmente, aqui no Brasil, ele soou como velho conhecido. É comum, em terras tupiniquins, casais em que um dos elementos é negro (ou “menos negro”), ouvir coisas do tipo “Vai nascer clarinho?”, “Será que vai escurecer depois que nascer?”, “Você vai clarear a família dele” (do marido negro) etc. O preconceito racial ainda é latente e foco de tensão entre as famílias do Brasil, um país que ainda carrega no DNA a herança escravagista, que o faz enxergar o povo negro como inferior.
Só que – gostemos ou não, aceitemos ou não –, estamos num país multirracial. Ainda por cima, um país que, apesar de uma minoria escravagista, classista e reacionária ainda insistir em manter tudo no atraso, vê muita gente antes discriminada agora em faculdades, andando de avião etc. Somos, portanto, uma nação que verá cada vez mais casamentos entre pessoas negras e brancas.
Além da saudável e bem-vinda mistura entre raças, testemunharemos muitos relacionamentos amorosos entre pessoas do mesmo sexo. Isso significa ver casais gays passeando abraçados ou de mãos dadas, se casando de papel passado e criando filhos.
Em suma: veremos gente sem medo de ser feliz. Gente que, em tempos idos, só encontrou desamor, exclusão social, solidão, discriminação... Agora, os dias atuais querem ver esse povo feliz, dentro das possiblidades de felicidade que nosso mundo oferece.
Quando pensamos em falta de felicidade, geralmente nos vêm à mente pessoas lacrimosas, sorumbáticas, cabisbaixas, desesperançadas e afins. Não nos passa pela cabeça que a falta de felicidade pode estar na agressividade com que julgamos nossos concidadãos de jornada terrestre, no olhar enviesado que dirigimos às pessoas que julgamos inferiores só por serem diferentes, nas perguntas indiscretas que ferem e invadem a intimidade alheia... A lista é longa e demonstra como há gente infeliz por aí. E sem se dar conta de que a felicidade também reside em deixarmos as pessoas viverem suas próprias vidas.
A “Revista Espírita” de 1860, em mensagem psicografada no início de fevereiro pela médium Srta. Eugénie, diz: “Se Deus pôs em nossos corações essa necessidade tão grande de felicidade, é que ela deve existir em algum lugar. Sim, confiai nele, mas sabei que tudo quanto Deus promete deve ser divino como ele, e que a felicidade que buscais não pode ser material.”
Esse “algum lugar” que “não pode ser material” está dentro de nós. Por isso, se o que sai de dentro de nós é o desrespeito às escolhas alheias, então não somos felizes.
Você se refere a pessoas da raça negra como “aquela pretinha”, “aquele neguinho” e afins, mesmo que sejam companheiros de ideal espírita? Então você é infeliz.
Você faz comentários jocosos em relação aos homossexuais e acredita que os gays, lésbicas, transgêneros e similares, inclusive os que atuam no movimento espírita, são inferiores a você ou obsidiados? Lamento informar, mas você é uma pessoa infeliz.
Se um amigo ou amiga namora alguém da raça negra, você fica imaginando como seria bom se o namoro não desse certo e que ela ou ele voltasse a namorar alguém branco? Sinto muito, mas você deve ser muito infeliz.
Você toma conta da vida dos vizinhos e colegas de trabalho para saber quem trai o cônjuge, quem é gay ou se separou? Infelicidade sua, lastimo.
Você é daquelas pessoas que fica perguntando por que aquele rapaz não tem namorada? Se ele tem, você fica querendo saber se haverá casamento? Quando virá o primeiro filho? Se haverá outros filhos? Ou então, fica de marcação cerrada para saber se o rapaz é gay? Se ele é gay e tem namorado, você pergunta se ele mora com o namorado e se ele dorme com o namorado? Pode parecer surreal, mas conheço, dentro do movimento espírita, gente que desfere esse tipo de pergunta. Quanta infelicidade na forma de indiscrição!
Ou então – suprema ausência de felicidade – você ofende, discrimina, persegue e agride negros e homossexuais? Muito triste a sua infelicidade que é sinônimo de orgulho, arrogância, falta de educação e também de inveja, despeito, frustração e por aí vai.
A felicidade, como evidencia o texto da “Revista Espírita”, deve existir em algum lugar. Um bom começo para que esse lugar de felicidade germine e floresça dentro de nós é tomarmos conta da nossa vida, tentarmos ser melhores e deixarmos os outros em paz com suas escolhas.
E lembre-se: – Gente feliz não perturba ninguém!
BIBLIOGRAFIA:
1- GERALDO, Nathália – “Vai nascer clarinho?”: como Meghan, mães negras já ouviram essa pergunta. Publicado em 10/03/21. Disponível em https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/03/10/vai-nascer-clarinho-como-meghan-maes-negras-ja-ouviram-essa-pergunta.htm?fbclid=IwAR21jO5s_H8SXS7J9kB33vAV91HuxEVnkO1HZRhTxqvV5iusat3hWTcNHqg
2- KARDEC, Allan – O livro dos espíritos, Federação Espírita Brasileira, 60ª edição, 1984, Brasília, DF.
3- ____________ – Revista Espírita 1860, Federação Espírita Brasileira, 4ª edição, 2019, Brasília, DF.
4- PICHETA, Rob – Família real britânica mergulha em crise após acusações de Harry e Meghan. Publicado em 09/03/21. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2021/03/09/familia-real-britanica-mergulha-em-crise-apos-alegacoes-de-harry-e-meghan
Comments