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Silver Marraz

Jesus nasceu no sertão


Jesus nasceu no sertão da Bahia. Quem diria que um homem que carregou a energia do universo nasceria diferente e sertanejo numa roupagem que não lhe serve mais. Seu pai não se chamava José, mas Josué e sua mãe era também Maria.

Em sua face, a infelicidade estampara também a vergonha de não terem o que comer quando Jesus, magro, pálido e raquítico, nasceu numa noite fria de um Natal.

Não estava num estábulo, não havia vacas nem ovelhas. Tinha um cachorro perebento que atendia pelo nome de Valente, cinco senhoras que cantavam cantigas de lamentações religiosas, o pai do menino, seu Neca, seu Pedro e seu Mané.


E para não contrariar as dores sentidas no parto por Maria, as palavras que da boca dela proferira, ora eram com verbos, ora com choro. Não tinha leite no peito para a primeira amamentação. Acortinado pela vergonha faminta, Jesus chorava um chorinho discreto como quem parecia compreender que escândalos por causa da fome não adiantariam de nada naquele cenário.


A família de Jesus já abrira mão de bens essenciais. Nem gado, nem casa tinham mais e migravam para outros lugares em busca de uma vida onde pudessem recomeçar.


A falta absoluta de alimentos os afetaria durante um longo período. O cenário era desolador, e a família sertaneja ia sendo consumida e sua descendência toda comprometida pela falta de acesso aos nutrientes necessários.


A rezadeira pegou Jesus nos braços e o benzeu. Jesus chorou, e não precisou completar trinta e três anos para o sacrifício. Valente latia. Maria olhava com tristeza a cena e Josué a abraçava. Jesus morrera.


Era difícil descrever a aparência no rosto de Jesus naquele momento. Ele tinha carinha de anjo, mas era possível notar de modo claro a carência proteica e rostinho inchado.

Jesus era parte da má distribuição de renda, da pobreza e da fome que existem em todos os cantos do nosso Brasil. Era vítima da estiagem, da falta de recursos na educação, saúde, alimentação, da ineficaz e escassa ajuda e também da condição precária de subsistência.


E a vida precária de Jesus não foi e nem há previsão de ser tratada, mesmo passados tantos anos de sua morte no sertão da Bahia. Ele faz parte das 800 milhões pessoas desnutridas no mundo e das 11 mil crianças que morrem de fome todos os dias.


E assim vai se tornando comum a vida de Jesus em meio ao crescimento populacional responsável pela existência da fome. E ele, que não é nenhuma divindade, é maltratado como milhões de pessoas que sofrem no Natal de todos os dias os efeitos causados pela desnutrição calórico–proteica, pelas doenças causadas pela deficiência de vitamina A, pela anemia – provocada pela deficiência de ferro –, pelo raquitismo – gerado pela deficiência de vitamina D, pelo bócio e pelos distúrbios causados pela carência de vitaminas do grupo B.


Jesus fora sacrificado, mas seus outros irmãos são vitimados diretamente, facilitados pelo aparecimento de outras doenças, que acabam levando os Jesus desnutridos à morte. Eles me causam vergonha pelo fato de fazerem parte de uma sociedade onde 10% concentram quase toda riqueza e o restante divide o que sobra numa briga injusta, infernal e cansativa.


Os Jesus do Natal de todos os dias, no sertão Brasil, morrem na penúria. Morrem de fome. Morrem definhando injustamente e comendo deficientemente alimentos que mal contêm vitaminas específicas e, por isso, na carência, vão sendo conduzidos à morte. Estes Jesus, mais assisados ainda que a fome, morrem todos os dias com os nomes de Marias, Joanas, Paulas, Marcos, Andrés, Joões e muitos milhares de outros pela falta de respeito que corrói silenciosamente a dignidade humana em todas as partes do mundo.


Por Silver D'Madriaga Marraz



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