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Nadia Aurelio

Julieta Hernández: Assassinada pelo falocentrismo patriarcal

Atualizado: 11 de jan.


Julieta -"Utopia macerada em chocolate"

 

Por Alíne Valencio.

 


Créditos: Divulgação/Instagram= @utopiamaceradaenchocolate


Esta matéria é uma homenagem a uma mulher, que pelo simples fato de ser mulher, foi mais uma vítima fatal do conceito patriarcal de que mulher é mero pedaço de carne, para servir homens “abrindo as pernas”, de um jeito ou de outro. Essa homenagem é para Julieta Hernandez, atriz, imigrante, palhaça, livre e mulher! Ela foi estuprada e assassinada quando ia para casa, na Venezuela, passar o reveillon com a mãe. Logo, você, homem que me lê e que profere o discurso do mimimi, saiba que, se alguma mulher que você ama muito – mãe, irmã, tia, prima, ou filha, ou ainda, qualquer outra mulher do seu convívio – morrer estuprada ou assassinada, a responsabilidade é sua. Foi o seu machismo, sua omissão e deboche que a matou. Mais adiante falarei sobre Julieta. Faço questão de entroná-la porque dar espaço para ela é proporcionar também voz para todas as mulheres que foram, são ou serão violentadas todos os dias. Antes, porém, se faz necessário que eu diga umas verdades. Que eu solte o grito das mulheres, que está parado no ar ou entalado na garganta há milênios. E como essa matéria é minha, e a dona da revista “Pàhnorama” é uma mulher (Ora! Vejam só!), eu tenho liberdade para ser desagradável, louca, mal amada e recalcada, fazendo jus aos atributos que o patriarcado e o machismo estrutural adoram. Muito prazer! Essa sou eu, uma pedra no seu sapato.


Antes de escrever essa matéria, pesquisei cabalmente, a fim de me informar a respeito do que estava sendo publicado por aí acerca da morte da Julieta. E quer saber? Não me surpreendi com tanto mais do mesmo. Eu não sou jornalista. Sou atriz, produtora, escritora e sexóloga, mas claramente me entediei com essa mídia brasileira que, notoriamente, apenas cumpre tabela e se atém a um script fabricado nas faculdades de jornalismo impondo um determinado modelo de escrita. Intuito: servir a um mercado recheado de circunstâncias misóginas e expressivamente machistas. Eu quero que esse formato se dane! Cartilhas matam mulheres. E protocolos, dogmas e regras padronizadas também. E não é de hoje. Portanto, às favas com o formato jornalístico de se escrever.  Repito! Não sou jornalista, logo, não tenho nenhuma obrigação de escrever assim ou assado. Vocês já compreenderam que eu sou uma mulher livre e ninguém manda em mim, né? Muito menos cartilhas jornalísticas. Dessa forma, posso botar a boca no mundo afirmando que a mídia brasileira, com seu modelo de escrita, é algoz das mulheres porque não cumpre sua função de denunciar de verdade. E não o faz por que?  Porque a mídia brasileira é mera chacrete do patriarcado. Portanto, a verdade que prevalece é a dos homens. Está pensando que é balela?



Créditos: Divulgação/Instagram= @utopiamaceradaenchocolate


Nenhuma matéria que encontrei na mídia a respeito do assassinato da Julieta enfatizou o que realmente importa: o preconceito que está sendo destilado contra ela pela simples razão de ela ter ido viajar sozinha de bicicleta. Quer dizer, voltamos ao bom e velho machismo estrutural, onde está intrínseco o pensamento bizarro de que a culpa de ter sido assassinada foi dela porque mulher não pode viajar sozinha, ainda mais de bicicleta.  Eu afirmo aqui e agora, nessa matéria, sem medo do massacre que possa se abater sobre mim, como mulher, atriz e defensora das minorias e da diversidade, que a mídia brasileira é uma corja pífia e baixa porque o patriarcado também o é. Logo, sendo a mídia a chacrete do patriarcado, não poderíamos esperar nada diferente. Nada mais óbvio e raso, como sempre. Pronto falei! Estão vendo baixar a louca né? Normal. Mulher nasce sendo louca para os misóginos. Logo, está tudo bem! Nenhuma das matérias veio em defesa dela, se mostrando solidária e empática quanto ao fato de que nós mulheres somos livres e temos direito de fazer e ser o que quisermos. Gostem os conservadores ou não. Gostem os religiosos ou não. E Julieta era assim: livre!


Nas redações das revistas brasileiras os chefes são homens. Quem escreve sobre mulheres, na maioria das vezes, (se é que eles perdem tempo com isso) são homens cujas mães ou esposas certamente estão em casa preparando o jantar deles. E se não estão, o farão quando chegarem. Sendo assim, a mídia brasileira é propositalmente omissa.  É um negócio que rende muito dinheiro. Uma estratégia muito bem arquitetada, pautada no descompromisso e no desserviço à realidade feminina.  O que encontrei nas matérias sobre Julieta?   Meramente “Control C control V”, com exceção de algumas, que, além disso, florearam suas pautas com uma frase bonita de algum famoso lamentando a morte dela.


Nenhuma das matérias que li teve atrevimento, decência e integridade suficiente para se aprofundar no que realmente importa: ser mulher no Brasil é uma ofensa social. E se essa mulher decidir ser dona do próprio nariz então, piorou. Se ela for livre como Julieta, ela será morta. Seu destino é a cova. E entenda-se por cova não somente a sepultura. Eu estou me referindo à cova na qual  o patriarcado nos enterra vivas todos os dias. E você que é mulher (e inclua-se, no conceito de gênero feminino, todos os que com ele se identificam) sabe o que é ser enterrada viva todos os dias.


Julieta Inés Hernandez, venezuelana, radicada no Rio de Janeiro, atriz, palhaça, e ciclo-viajante, representa o reflexo da invisibilidade feminina perante o patriarcado. A prova disso é que quem deu por falta dela não foi nenhum amigo, parente ou conhecido do sexo masculino. Se não fossem duas amigas mulheres ficarem preocupadas com seu sumiço e irem atrás de notícias sobre seu paradeiro e sua morte – além de se posicionarem nas redes sociais, e mais, indo pessoalmente até o Amazonas para realmente saber o que aconteceu de fato – talvez ela estivesse até hoje desaparecida e ninguém, quer dizer, ninguém do sexo masculino teria dado falta dela, ou pelo menos teria levado a sério seu sumiço. E eu pergunto: Teriam ido procurar por ela? Teriam se manifestado? Teriam se posicionado de forma contundente contra o machismo? Teriam a coragem de enfrentar os escárnios advindos de outros homens se saíssem pelas ruas empunhando cartazes e protestando?  


Quantos são os homens que realmente se manifestam contra o machismo estrutural, a misoginia e o patriarcado? Seriam capazes de abrir mão de seus afazeres ou prazeres de fim de ano para irem até o Amazonas encontrá-la?


Não vou repetir as informações e detalhes do assassinato. Isso, muitas outras reportagens já o fizeram. Portanto, se você quiser se deter nesses aspectos, por favor, pesquise. Aqui, continuarei trazendo outro olhar sobre tudo que aconteceu, como vocês estão percebendo. Um deles é sobre o fato de que quem ateou fogo na Julieta foi outra mulher, e motivada por ciúme!  É sobre essa lamentável circunstância que pretendo me debruçar. Uma vez que a motivação foi ciúme, está claro que a esposa do estuprador viu em Julieta uma ameaça. A rivalidade feminina imperou, já que, segundo constam nos relatos das investigações policiais, essa moça não estava sob o efeito de entorpecentes. O estuprador sim, mas a sua esposa não. Sendo assim, é fácil inferir que Julieta representou para ela um perigo. Isso significa dizer que essa mulher estava afundada em conceitos patriarcais que endossam a inefável premissa de que uma mulher sem um homem não é ninguém, ainda que seja um estuprador como o marido dela. Ou seja, é preferível estar ao lado de um falo, a qualquer custo, do que ficar sozinha.




Créditos: Divulgação/Instagram= @utopiamaceradaenchocolate


Neste caso, então, a soberania falocêntrica era a raiz da questão. Na verdade, tudo foi motivado por um falo – o estupro e o assassinato. Mais uma vez, a sociedade está às voltas com o endeusamento do órgão sexual masculino. É ele que rege todas as motivações da sociedade atual. O estuprador porque viu em Julieta apenas um objeto de satisfação do seu órgão sexual, e por isso a estuprou. E a esposa, por sua vez, talvez acreditasse que, sem o marido, não encontraria outro que a quisesse. Aliás, esse é um dos argumentos mais usados por abusadores. Destarte, posso concluir que esta mulher decerto também era vítima de violência constante. E sua dependência emocional para com o membro masculino transformou-a em algoz de outra mulher. Não fosse assim, ela deveria ter se unido a Julieta com o objetivo de denunciar o marido e se separar dele. Porém, não é assim que as coisas funcionam nessa sociedade repugnante, que incentiva mulheres a odiarem mulheres porque elas representam perigosas predadoras do falo do marido alheio.


Outro aspecto fundamental de salientar aqui – e que se configura mais um evidente apontamento a confirmar a predominância da soberania masculina – é uma coletiva que saiu na imprensa para esclarecimentos dos fatos relacionados ao assassinato. Eu a assisti e fiquei enojada. Se o caso se enquadra em feminicídio, por que não foi levado a cabo por uma delegacia especializada em atendimento a mulheres? O que aqueles policiais homens estavam fazendo ali comemorando? Comemorando o quê? Uma mulher foi estuprada e atearam fogo nela. E Julieta ainda estava viva! Além disso, ela foi amarrada e enterrada num quintal. Por que os policiais se congratularam? É vergonhoso que a sociedade tenha chegado a esse ponto! Cadê as mulheres desse caso – delegadas, promotoras e investigadoras? Onde estão as autoridades públicas, que não se manifestaram a respeito disso? Mais um ponto vantajoso para o patriarcado, principalmente os militares: se gabar da sua competência, e excelência, ostentando as estrelas no ombro do casaco.


É lamentável que essa moça extremamente talentosa só tenha alcançado visibilidade agora, depois de uma morte brutal, e para trazer à tona verdades que incomodam muito e das quais as pessoas fazem questão de se desvencilhar o mais rápido possível. Essa verdade se chama mulher e incomoda, atrapalha, aborrece o sistema de todas as formas possíveis. Julieta era uma atriz excepcional. Entretanto, quem a reconheceu por isso nesse mercado totalmente inoperante em políticas públicas realmente efetivas para mulheres artistas? Principalmente para o mercado da palhaçaria?


Imaginem vocês: se ser atriz, ainda hoje é algo mal visto, que dirá sendo palhaça! E eu que o diga! Afinal estou na vida artística desde a adolescência, ou seja, há mais de 30 anos. Logo, posso afirmar que ser atriz nesse país é visto de forma violentamente pejorativa. Ser atriz, mulher e palhaça então, é um prato cheio para todo tipo de desqualificação feminina. Para a sociedade conservadora em que vivemos, ser atriz e palhaça, além de vergonhoso, é coisa de mulher puta. Assim, a luta acirrada das artistas palhaças para conquistar sua dignidade profissional beira a humilhação. Segundo amigas muito próximas com quem eu conversei, ela batalhou muito para conquistar seu espaço no mercado artístico, mas nunca conseguiu. Sonhava com o reconhecimento profissional. E para você que já está julgando esta moça, pensando que ela estava em busca de fama (e se estivesse qual seria o problema?), por favor guarde seu julgamento para si, porque sei que o desejo de Julieta de transformar a sociedade através da arte era genuíno e real. Real porque ela verdadeiramente fazia diferença na vida de muitas pessoas. Envolvendo-se, inclusive, em diversos projetos sociais.


Que Julieta seja para nós, mulheres, a certeza de que, sim, somos uma só. Que ela esteja sempre presente nos debates, conferências e problematizações nas plenárias no Congresso Nacional, inspirando-nos quando tudo parecer sem solução, ou até mesmo parecer perdido, nos apontando um horizonte de esperança e fé num futuro mais justo para todas nós. Que ela seja vista por todas nós como uma ancestral da arte a ser cultuada nos palcos, nas ruas, nos risos e nos choros até o fim. Até o dia em que nós, mulheres, formos livres de verdade e donas de nós mesmas sem sermos tachadas, desqualificadas, humilhadas, constrangidas e aviltadas a todo momento e em qualquer coisa que a gente faça.  



Créditos: Divulgação/Instagram= @utopiamaceradaenchocolate


Nosso desejo profundo é que ela descanse em paz e seja exaltada nos céus como Deus faz com toda mulher. Se sua memória, no entanto, estiver em cada coração feminino, se seu semblante tão alegre permanecer na nossa memória, ela será a âncora que nos fará fincar o pé na teimosia de sermos livres e sermos nós mesmas, resistindo até o fim dos tempos.


Se há vida sobre a Terra é por causa de uma mulher, pois, até onde eu sei, homem não dá à luz. Logo, você, machista, estuprador, pedófilo, abusador, espancador, saiba que sem uma mulher para te gerar por nove meses teu esperma para nada serviria. E você não existiria para se gabar de ter um falo no meio das pernas.


Eu sei que essa é a tua raiva. Você não tem esse poder de gerar vidas. Você não é poderoso como uma mulher. Então, você se enfurece e a qualquer custo, tenta rebaixar mulheres ao teu nível. Mas eu te pergunto: você rebaixaria a Deus? Tenho a mais absoluta convicção de que você não é suficientemente poderoso para alcançar tal façanha. Portanto, saiba que mulher é um ser protegido, abençoado e divinamente validado por Deus. E com Deus, ninguém pode! Quando a vontade de Deus precisa ser feita, não há nada sobre a terra que impeça isso. E Deus quer mulheres soberanas, livres e donas de si. Portanto, não há homem ou falo que vá impedir que, novamente, em tudo sobre a existência se reconheça a força de uma mulher. Não há nada mais poderoso que uma mulher. Somos parceiros, nós mulheres,  e Deus. É ele lá e a gente aqui.


Julieta! Eu, Aline Valencio, não te conheci pessoalmente e lamento ter conhecido você numa situação como essa. Porém, não importa, porque somos atrizes, e mulheres livres. E esteja onde você estiver, não vou soltar tua mão, porque a conexão entre mulheres transcende tempo e espaço.


Luz. Brilha. Brilha garota!


Até breve.


Contribuíram para essa matéria duas amigas da Julieta: Karla Concá e Cris Muñoz. 


Gratidão imensa.

 

 

 

 

 

 

 

 

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