Do ativismo à política institucional, a trajetória que mudou paradigmas e abriu caminhos
Na vibrante década de 1990, um movimento coletivo redefiniu os rumos da participação política das mulheres pretas, desenhando uma trajetória de impacto duradouro na sociedade. A multiplicação de organizações não-governamentais (ONGs) como Geledés, Fala Preta!, Criola, Casa de Cultura da Mulher Negra, Nzinga - Coletivo de Mulheres Negras de Belo Horizonte, Maria Mulher, e outras, associada à fundação da Rede de Mulheres Afro Latino-Americanas e do Caribe, em 1992, consolidou um esforço concentrado para amplificar o protagonismo feminino negro.
A Revolução Discursiva: Novos Horizontes para o Feminismo
No calor dessa efervescência, feministas negras marcaram presença nas conferências internacionais da ONU, destacando-se na modificação do repertório discursivo. Ao contrário das décadas anteriores, essas mulheres não se limitavam a grupos feministas autônomos, levando seus discursos a diversas esferas socioculturais e políticas. Uma revolução silenciosa estava em curso, substituindo a militância dupla por práticas integradas, visando transformar os discursos e práticas dominantes.
Da Resistência à Ação Estratégica: Conquistas nas Políticas Públicas
Ativistas perceberam que os conselhos estaduais e nacionais, outrora foco de aproximação institucional, estavam se afastando das demandas das mulheres negras. Entretanto, a virada dos anos 1990 trouxe um cenário internacional favorável, com reformulações constitucionais em países latino-americanos e a consolidação de redes internacionais de advocacy. O resultado foi uma coalizão discursiva em torno de ações afirmativas, saúde e direitos reprodutivos, marcando uma nova era para o movimento de mulheres negras.
Do Global ao Local: Impacto Internacional, Mudança Local
Com contatos internacionais estabelecidos, iniciativas importantes, como o programa de saúde do Geledés e projetos como Geração XXI e SOS-Racismo, ganharam vida. O Seminário Nacional de Políticas e Direitos Reprodutivos, em 1993, foi um divisor de águas na organização política das feministas negras, resultando na emblemática Declaração de Itapecerica da Serra. Esse documento, ao afirmar a liberdade reprodutiva como essencial para as etnias discriminadas, representou uma ruptura política e influenciou debates nacionais e internacionais.
Itapecerica da Serra: Uma Ruptura Necessária
A Declaração de Itapecerica da Serra não apenas desafiou o pensamento hegemônico do Movimento Negro sobre os direitos reprodutivos, mas também consolidou um espaço de interlocução entre organizações de mulheres pretas, o Estado brasileiro e redes internacionais de advocacy. O debate público sobre saúde reprodutiva, raça e gênero ultrapassou fronteiras militantes, transformando-se em tema de pesquisas acadêmicas e políticas.
Do Compromisso à Realidade: Avanços na Saúde da População Negra
O caminho para a saúde integral da população negra, iniciado nos anos 1990, encontrou respaldo em políticas públicas nos anos 2000. Após obstáculos e debates, a criação do Comitê Técnico de Saúde da População Negra, em 2004, e a aprovação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, em 2006, marcaram conquistas significativas. Reconhecendo o racismo institucional, essas políticas visam enfrentar desigualdades e garantir equidade racial no sistema de saúde.
A Internacionalização da Luta: Durban e a Mudança de Paradigmas
O marco histórico da III Conferência Mundial Contra o Racismo, em Durban, África do Sul, em 2001, consolidou o protagonismo das mulheres negras brasileiras na arena internacional. Ao influenciar a Declaração e o Programa de Ação de Durban, essas ativistas pavimentaram o caminho para políticas de ação afirmativa. A interseccionalidade, incorporada à literatura acadêmica brasileira pós-Durban, representou uma mudança paradigmática, enriquecendo o diálogo sobre desigualdades sociais.
Da Ascensão à Adversidade: O Cenário Político Pós-Durban
Entre 2003 e 2010, a administração do PT promoveu medidas institucionais e políticas públicas para a promoção da igualdade racial e de gênero. No entanto, mudanças políticas posteriores, como o impeachment de Dilma Rousseff, trouxeram incertezas e cortes orçamentários. A extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, em 2016, marcou um retrocesso significativo.
Um Legado de Resistência e Transformação
Apesar dos desafios, a jornada das mulheres pretas na sociedade brasileira deixa um legado de resistência, transformação e avanços concretos. A articulação entre movimentos sociais, a internacionalização da pauta e a conquista de políticas afirmativas evidenciam que, mesmo diante de adversidades, as mulheres pretas continuam a moldar o futuro do Brasil, inspirando gerações presentes e futuras.
Desafios e Perspectivas no Século XXI
O século XXI apresenta novos desafios para as mulheres pretas brasileiras, desde a persistência do feminicídio até as ameaças à democracia. A atualidade exige adaptações estratégicas, diálogo constante e mobilização eficaz. No entanto, a história dessas mulheres, marcada por conquistas notáveis, inspira a continuidade da luta pela equidade racial e de gênero, consolidando um legado inegável na construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.
Ana Soáres
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