Família luta para ter Sônia Maria de volta ao aconchego do lar que ela ainda não conheceu
Sônia Maria de Jesus, atualmente com 50 anos, está vivendo uma situação que infelizmente, no Brasil, é mais comum do que se pensa, apesar de já estarmos na terceira década do século 21: escravidão. O fato, por si só chocante, ganha contornos mais fortes pelo fato de Sônia estar nessa situação há 40 anos e na casa de alguém que, a princípio, deveria ser o guardião-mor da justiça e dos direitos humanos: um desembargador.
No entanto, mesmo depois de ter sido encontrada e libertada por auditores do Ministério do Trabalho, o desembargador, numa manobra que está sendo chamada de “desresgate”, conseguiu se valer da própria lei para levar Sônia de volta para o cativeiro doméstico.
Entenda o caso
Quando tinha pouco menos de 10 anos, Sônia, então residente em São Paulo (SP), foi tirada de casa devido a casos de violência física por parte do genitor. Foi, então, morar com D. Maria Leonor Cunha Gayotto até que a violência cessasse. Só que, um ano depois, ela foi levada para Santa Catarina, a fim de residir com a filha de D. Maria Leonor, esposa do desembargador Jorge Luís Borba, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC). Aí, ela se tornou o que muitos chamam de “cria da casa”. Tudo isso, é bom frisar, sem que houvesse qualquer autorização judicial que confiasse a guarda da menina para os Gayotto Borba.
Deficiente auditiva, Sônia é analfabeta, não letrada na língua brasileira de sinais (Libras), comunica-se por meio de gestos rudimentares criados pela família, nunca foi à escola e, conforme testemunhos, ajudou a criar as crianças da família, além de realizar afazeres domésticos. Não fez amigos, não teve vida social, só saía de casa em companhia de alguém do clã, só teve documentos emitidos a partir de 2019 e perdeu o contato com a família biológica – a mãe procurou por ela incessantemente, mas morreu sem realizar o sonho de rever e reaver a filha.
Em 2023, Sônia Maria foi resgatada pelas autoridades. Apresentava sérios problemas de saúde e de higiene. O desembargador e familiares, no entanto, conseguiram levá-la de volta, embora tenha ficado evidente sua incapacidade de tomar uma decisão, o que foi comprovado por meio de exames psiquiátricos.
Após esse retorno, os irmãos de Sônia só conseguiram revê-la na sede de Polícia Federal e ante a presença de Jorge Luís Borba. Além disso, a família que a detém impediu a continuidade do tratamento prescrito pelas autoridades administrativas. Esse tratamento visa reconectar Sônia Maria à família biológica, bem como avaliar seu nível linguístico, aptidão para tomar decisões e capacidade crítica. Além disso, o desembargador ajuizou ação cível de reconhecimento de paternidade afetiva de Sônia, mesmo ela não tendo discernimento para compreender conceitos básicos da vida social (por exemplo, relações afetivas entre pais e filhos) nem para expressar a própria vontade de forma livre e independente, requisitos exigidos tanto pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para maiores de 18 anos, bem como pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Segundo apurado tanto pela imprensa como pelas autoridades quando o caso eclodiu, Sônia dormia num cômodo fora da casa, trabalhava de domingo a domingo e nunca teve direito a salário ou férias. Ainda segundo especialistas em legislação e em direitos humanos, trata-se de um retrocesso no combate à escravidão contemporânea o fato de Sônia ainda estar sob a tutela dos Gayotto Borba.
Tanto autoridades, familiares e entidades de defesa dos direitos humanos vêm se mobilizando para que Sônia possa, enfim, conviver com os irmãos – todos alfabetizados, trabalhando formalmente e com vida estabilizada – e demais familiares e poder ter uma existência que possa ser chamada de vida, ou seja, com a liberdade de ir e vir e acesso à saúde, educação, lazer, seguridade social e convivência com pessoas queridas.
Marcelo Teixeira
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