Quando escolhi falar sobre o poder da compaixão, não pensei muito sobre que caminho seguir. Contaria histórias? Teorizaria? Não sabia ao certo. Quando me decidi a enfrentar a tela em branco do arquivo em word ainda não gravado, lembrei-me de quando somos tocados por compaixão e, graças a ela, passamos por cima de convenções e preconceitos que a sociedade já deveria ter deixado para trás.
Uma dessas ocasiões está ricamente retratada na Parábola do Bom Samaritano (Lucas, 10: 25-37). Nela, Jesus narra sobre um homem que, viajando da cidade de Jerusalém para a cidade de Jericó, foi atacado por ladrões. Eles, além de o assaltarem, despiram-no e surraram-no, deixando-o quase morto, e fugiram. Passou pelo local um sacerdote, representante máximo da religião institucionalizada, viu a cena e nada fez. Foi embora. Em seguida, veio um levita, que é o homem encarregado de estudar as Escrituras e passar o conteúdo ao povo. Ou seja, alguém também dotado de importância social. Também nada fez. O terceiro a passar foi um samaritano, ou seja, habitante da Samaria, região com a qual o povo de Jerusalém tinha severas e antigas rusgas. Foi ele quem cuidou do homem. Compadecido com o quadro que observava, tratou-lhe as feridas e hospedou-se com ele numa estalagem, onde olhou por ele. No dia seguinte, antes de partir, deu um dinheiro ao dono do local e disse: ‘Cuide dele. Quando eu voltar lhe pagarei todas as despesas que você tiver’.
Quando terminou de contar a história, o Cristo perguntou ao doutor da Lei que estava querendo por seu conhecimento à prova: ‘Qual dos três (sacerdote, levita e samaritano) foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes? Resposta do referido douto: ‘Aquele que teve misericórdia com ele’.
Jesus, então, finalizando a história, disse: ‘Vá e faça o mesmo’.
Essa diretriz do Rabi ecoa em meus ouvidos toda vez que saio às ruas. Às vezes consigo bancar o samaritano, às vezes não.
No livro “Chico, de Francisco”, obra em que o escritor Adelino da Silveira reproduz o teor de entrevistas feitas com o médium mineiro Chico Xavier, há um episódio bastante interessante. A pauta era a parábola na qual me debruço. Em dado momento, o espírito Emmanuel aparece e pede para Chico evidenciar que todos os personagens da história têm identificação: ladrões, sacerdote, levita, samaritano e dono da estalagem. O único de quem nada se sabe é o assaltado. Quem era? Qual nome tinha? Era jovem ou maduro? Tinha posses? Ninguém sabe. Aí, Emmanuel, por meio de Chico, ressalta a mensagem mais importante: é alguém caído na beira da estrada. Alguém que precisa de socorro.
Assim deve ser na lida cotidiana. Quem são as pessoas atribuladas ou carentes que nos pedem dinheiro, informação, tempo para serem ouvidas etc.? São ricas? Pobres? Brancas? Negras? Amarelas? Heterossexuais? Bissexuais? Homossexuais? Flamenguistas? Atleticanas? Corintianas? Votam na direita? Votam na esquerda? São católicas? Espíritas? Budistas? Muçulmanas? Não importa! São pessoas caídas à beira da estrada da vida. Pessoas a quem devemos prestar auxílio, seja de que forma for.
Era um dia quente do verão de 2017. Estava eu na região de Itaipava, terceiro distrito de Petrópolis (RJ) resolvendo um assunto de trabalho. Itaipava era antigamente uma zona rural repleta de sítios e casas de veraneio. Com o tempo, a badalação transformou-a num local cheio de lojas de decoração, restaurantes, shoppings e condomínios de luxo.
Eu já havia dado conta do trabalho que tinha ido resolver. Nas proximidades de uma escola municipal, passei andando por três homens sentados no chão, próximos a uma banca de jornal. Talvez fossem moradores de rua; talvez fossem alcoólatras de baixa renda, mas com moradia fixa; talvez fossem as duas coisas, não sei ao certo. Só sei que um deles – o mais jovem, uns 30 anos – me pediu R$ 0,50.
Saquei da carteira e comecei a catar a moeda. Foi quando ele veio em minha direção. Tinha um sorriso irregular de quem não pode cuidar dos dentes. Mas era um sorriso bonito; sorriso de quem iria ganhar a quantia solicitada, que eu já havia encontrado. Quando a entreguei, ele sorriu novamente e agradeceu. Eu, então, passei a mão no rosto dele e disse: ‘Você lembra muito um sobrinho-neto querido que ainda não tive a oportunidade de conhecer pessoalmente.’ Ele sorriu novamente. Um sorriso de plena felicidade. Um sorriso de quem foi reconhecido e tratado como ser humano. Um dos mais belos sorrisos que já vi, apesar da falta de alguns dentes. Sorriso de alma!
Chegou mais perto de mim. Beijei-lhe a testa e dei-lhe um meio abraço. Ele, então, ainda mais sorridente, todo feliz, agradeceu e foi dar à moeda o destino que lhe aprazia. Aí, atravessei a rua em direção ao ponto de ônibus. E a cada passo que eu dava, concluía mais uma vez como o amor em forma de compaixão (que significa empatia ante a dificuldade ou tragédia alheia) faz falta em nossa sociedade e como precisamos de muito pouco para levar felicidade a alguém. Eu, homem imperfeito, nas minhas tentativas diárias de ser um pouco melhor (nem sempre acerto), atesto isso toda vez que consigo.
Naquele dia, a força da compaixão me fez enxergar além da roupa puída daquele homem. Eu o vi como ele de fato é – gente como a gente.
Era alguém precisando de uma moeda. Foi alguém que fiz feliz por entregar muito mais que a moeda. Ambos beneficiados pelo poder da compaixão, uma das vertentes mais doces do amor.
Marcelo Teixeira
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