Na segunda-feira, 12 de agosto, no telejornal “Em Pauta” (Globonews), um dos comentaristas disse que a classe política havia demonstrado perplexidade ante a notícia da morte de Delfim Neto, que foi ministro da Fazenda de 1967 a 1974 (ou seja, durante os governos dos militares Costa e Silva e Emílio Médici), embaixador do Brasil na França de 1975 a 1978, ministro da Agricultura e do Planejamento por todo o governo de João Figueiredo (o último militar a governar o País) e deputado federal por cinco mandatos seguidos. Delfim Neto faleceu aos 96 anos por causas naturais.
Fico pensando por que tanta perplexidade ante a morte de um senhor de idade bem avançada, considerável patrimônio acumulado e que decerto partiu deste mundo cercado por todo conforto e assistência médica de Primeiro Mundo. Fosse ele um “pobre de marré deci”, teria morrido há muito tempo e já teria até reencarnado. Delfim Neto – convém ressaltar – foi um dos signatários do nefando Ato Inconstitucional Nº 5 (AI-5), que cassou os direitos políticos de vários opositores ao regime, mandou para o exílio nomes como os compositores e cantores Gilberto Gil e Caetano Veloso, o diretor teatral Augusto Boal, o educador Paulo Freire, o antropólogo Darcy Ribeiro e o sociólogo Herbert de Souza. Isso sem falar dos que foram torturados e/ou mortos, como o jornalista Vladimir Herzog, a estilista Zuzu Angel e seu filho, Stuart Angel... Há também casos de pessoas que adoeceram e pereceram por terem sido submetidas, anos a fio, a perseguições e intimidações, sendo obrigadas a mudar de endereço, a lidar com perdas financeiras e de trabalho etc. Foi o caso do cantor e compositor Taiguara.
Delfim Neto foi, ainda, o responsável pela falácia do milagre econômico, período em que a concentração de renda aumentou exponencialmente, gerando uma desigualdade social cujas consequências sofremos até hoje.
Por que a morte dele teria causado tanta perplexidade entre os políticos? Porventura eles pensam que os poderosos de ontem ou hoje não morrem? Sou impelido a informar que todas as pessoas morrem, que dinheiro e prestígio não salvam vidas quando chega a hora derradeira, que ninguém precisa estar velho ou doente para morrer, que gente jovem e saudável também morre... E informo também que, quando passamos para o lado de lá, não dá para levar dinheiro, joias, roupas de grife, diplomas, uma garrafa da nossa bebida preferida, lanchinho para comer durante a viagem... Tudo fica por aqui. A única coisa que levamos é a nossa bagagem moral, que é pessoal e intransferível. Tudo que fizemos de bom e de ruim vai conosco. É esse patrimônio que irá definir a nossa condição do lado de lá.
Boa parte das pessoas, no entanto, não quer pensar a respeito. O turbilhão do dia a dia materialista nos afasta do assunto morte. Ele é indesejável. Por isso, os poderosos, tiranos, violentos e afins se vestem de onipotência e sensação de invencibilidade. Outros tantos, tragados pelas preocupações do cotidiano, preferem não ter uma preocupação a mais. Já bastam as questões envolvendo moradia, dinheiro, educação dos filhos, saúde, profissão e similares. Nossa, existência, no entanto, se dá de forma precária aqui no planeta. Basta um acidente automobilístico ou aéreo, um caso de violência urbana, uma doença repentina ou que já vinha nos inquietando há tempos para nos tirar de cena e nos jogar para o lado espiritual da vida.
Para tanto, não é preciso ser rico ou pobre, poderoso ou anônimo, influente ou insignificante, ateu ou religioso, jovem ou idoso... Basta estar vivo!
Talvez a perplexidade a que o comentarista se referiu diga respeito à certeza de finitude que deu as caras no impávido ambiente político, sempre tão cheio de si, principalmente quando ligado aos anos de chumbo, que tanta infelicidade causou. Aí, a dama de negro leva embora um poderoso de então, que inevitavelmente terá de dar conta do poder que teve em mãos. E do lado de lá, não existe carteirada, salvo conduto e imunidade parlamentar. É infrutífero também proferir frases como “Sabe com quem está falando?”, “Chama fulano, que é meu amigo”, “Você não sabe de quem sou filho” e afins.
Hamilton Crisóstomo, que foi meu professor de História no Ensino Médio, contava que, quando Michelangelo (1475-1564) pintou o teto da Capela Sistina, foi admoestado pelo Papa. Motivo: Sua Santidade queria saber por que havia sido pintado um homem nu diante de Deus. Michelangelo respondeu que ele não via outra forma de a criatura se apresentar diante do Criador. Isso quer dizer que não adianta recorrer a subterfúgios, disfarces ou desculpas. Seremos nós diante de nossa própria consciência. Se, apesar dos nossos altos e baixos, tivermos nos pautado pelo bem de todos, estaremos bem. Em contrapartida, se houvermos semeado – direta ou indiretamente – crueldade, desamor, tirania, fome, intolerância, miséria e morte, lamento informar que não existe escuridão pior que a escuridão de nós mesmos. Aí sim, a perplexidade fará morada nos corações incautos.
Marcelo Teixeira
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