“Hoje cedo, na Rua do Ouvidor
Quantos brancos horríveis eu vi
Eu quero um homem de cor
Um deus negro do Congo ou daqui
Que se integre no meu sangue europeu”
Estávamos nos primeiros anos da década de 70 do século passado quando a música “Black is beautiful”, de Marcos e Paulo Sérgio Valle, estourou nas rádios na voz retumbante de Elis Regina. Os versos que transcrevo acima são os cinco primeiros da canção.
O título remete ao movimento homônimo surgido nos anos 60 nos Estados Unidos e que depois se espalhou pelo mundo. O objetivo era mostrar que as características físicas dos negros – cabelo, tom de pele, traços faciais etc. – nada são feios e precisam ser assumidos, ou seja, nada de ficar alisando cabelo, afinando o nariz etc. À época, artistas norte-americanos como Michael Jackson (então um garoto), Stevie Wonder, Diana Ross e Marvin Gaye, dentre outros, usavam e abusavam do cabelo “black power”. Idem por aqui, com nomes como Tony Tornado, Elza Soares, Tim Maia, Gilberto Gil, além de Jairzinho e Paulo César Caju, jogadores de futebol. O cabelo “black power” era – e ainda é – um sinal de empoderamento e orgulho que, inclusive, simboliza uma coroa para meus irmãos negros. Sim, faço questão de chamá-los de irmãos.
A letra da canção fala sobre alguém que se depara com brancos horríveis transitando pela Rua do Ouvidor, uma das transversais da movimentada Av. Rio Branco, no centro financeiro da cidade do Rio de Janeiro. Em seguida, clama por um homem de cor (expressão então muito utilizada, mas hoje em desuso), um deus negro do Congo ou daqui.
Lembro-me desta composição dos irmãos Valle reiteradas vezes. Por exemplo, quando li sobre o assassinato do jovem Moise Kabagambe, de 24 anos, em janeiro de 2022. Deus negro do Congo, como diz a música, Moise chegou ao Brasil quando tinha 11 anos. Veio com a família, fugindo dos conflitos armados que vêm assolando o Congo. Estima-se que, atualmente, haja pouco mais de 50 mil refugiados congoleses no Brasil. Moise trabalhava num quiosque na praia da Barra da Tijuca. Ao cobrar por diárias atrasadas, foi espancado e morto pelo proprietário do quiosque e mais cinco homens. Um crime que encheu de indignidade a comunidade congolesa e a todos nós.
E o que dizer das reiteradas ofensas que o jogador Vinny Jr. recebe de torcedores espanhóis quando está em campo? De D. Vilma, antiga porta-bandeira da escola de samba carioca Portela, que foi a Brasília receber uma homenagem do Governo Federal, em novembro de 2023, e foi tomada à conta de ladra e humilhada no “free shop” do aeroporto por ser negra?
Quase todos os dias, vejo notícias assim. Pessoas negras que foram discriminadas, perseguidas, agredidas, ridicularizadas ou mortas simplesmente por causa do tom da pele, seja no mercado, no restaurante, na loja de departamentos ou na rua. São tidas à conta de marginais e sumariamente violentadas ou exterminadas. Morro de vergonha, tristeza e indignação toda vez que isso acontece. E como acontece! Como cantava Elza Soares, “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.
Tal qual a canção “Black is beautiful”, eu também quero homens de cor. Quero deuses negros do Congo ou daqui. Ou seja, quero uma sociedade livre de racismo e preconceito social. Quero ver homens e mulheres negras ocupando todos os espaços, entrando com toda galhardia em escolas, universidades e nos mais variados nichos do mercado de trabalho. E também tendo acesso a saúde, cultura, lazer e ao que mais lhes for de direito. Integrados, enfim, ao sangue dos descendentes de italianos, alemães, portugueses, poloneses e afins, que tanto têm orgulho de seus sobrenomes e ascendências, mas são incapazes de perceber que os negros trazidos para cá não conseguem sequer mapear suas raízes.
Não aguento mais brancos horríveis tratando o povo negro como cidadãos de segunda classe. Não aguento mais ver violência, casos de injúria racial e principalmente brancos e brancas ignóbeis dizendo que as reivindicações da comunidade negra não passam de mimimi.
Sempre levantei a voz contra o racismo e todo e qualquer tipo de preconceito. Continuarei levantando, pois justiça e igualdade para todos me guiam. É um idealismo de quem sonha com dias melhores e também uma forma de amenizar a vergonha que eu sinto toda vez que ocorrem casos como os de Moise, Marielle, Ágatha, Vilma, Vinny Jr., João Pedro, George Floyd...
Ser branco às vezes me dá uma vergonha danada!
Marcelo Teixeira
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