A ida a um posto médico a fim de marcar vacinação domiciliar para uma tia idosa com dificuldade de locomoção acabou chamando minha atenção para outro fato. Na mesma sala em que eu estava, uma mulher de 54 anos media o índice de glicose no sangue, que resultou alto. As enfermeiras, então, resolveram encaminhá-la ao médico. Antes, porém, perguntaram o que havia acontecido, já que as taxas dela, paciente do local, costumavam estar normais. Ela explicou que havia ficado tensa com um problema de saúde que a mãe, com mais de 70 anos, tivera. Isso, segundo ela, poderia ter influenciado no aumento do índice glicêmico. E relatou também que costumava ficar muitas horas sem comer devido ao trabalho, o que estava em desacordo com o prescrito pela nutricionista e endossado pela médica. Ante a advertência carinhosa das enfermeiras, a paciente arrematou: – Trabalho como costureira numa confecção. Irei almoçar assim que sair daqui. Só que, no meu trabalho, durante o expediente, ninguém pode parar para comer. Apenas beber água.
Saí do local incomodado com o que acabara de ouvir. Por recomendação médica e nutricional, aquela mulher precisa se alimentar de forma saudável, em intervalos regulares, a fim de manter as taxas de glicose em dia. No entanto, a confecção que a emprega a proíbe. Afinal, para garantir a produtividade, as costureiras têm de trabalhar de forma ininterrupta, tais quais as máquinas que manipulam.
Não é novidade a desconsideração com que boa parte dos empregadores brasileiros trata os que para eles trabalham. À época do carnaval de 2023, li uma reportagem sobre uma profissão que eu desconhecia: a dos cordeiros. Quem são eles? Os trabalhadores que, nos trios elétricos que percorrem a cidade de Salvador, seguram as cordas que separam as pessoas que garantiram vaga no bloco dos que acompanham a folia fora das cordas. Estes são conhecidos como “pipocas”.
Segundo reportagem do portal de notícias Universo On Line (UOL), os cordeiros, embora tenham vários direitos trabalhistas assegurados por lei, costumam se defrontar com abusos. Entre eles, falta do material de segurança estipulado e de banheiros. O abuso maior, contudo, seria a dificuldade para receber as diárias, sempre em torno de R$ 60,00. Na hora do trabalho, exigem do cordeiro pontualidade e dedicação. Na hora de pagar, porém, o trabalhador é obrigado a se submeter a longas esperas. Muitas das vezes, sentado na calçada.
Esse tipo de descaso me faz lembrar algo ocorrido aqui em Petrópolis (RJ). A filha de uma conhecida, estudante de arquitetura, estagiava, na década de 90, em uma empresa fabricante e comerciante de móveis. No dia do pagamento, a esposa do dono aparecia no escritório, pegava todo o dinheiro e ia embora. O empresário, então, pagava os funcionários e estagiários com cheques pré-datados.
São vários os casos de desprezo do empresariado para com a classe trabalhadora. A lista inclui horas extras nunca pagas, fundo de garantia não depositado, balconistas obrigadas a largar a marmita para atenderem à freguesia, gente que almoça – pasmem! – sentada no vaso sanitário porque não consegue (ou não pode), no horário estipulado para a refeição, sair para almoçar; pessoas contratadas para determinada função, mas que, na verdade, exercem mais duas ou três sem receber por elas, entre outras várias.
Tais diatribes se devem ao histórico de maus tratos perpetrados contra o trabalhador brasileiro, algo que remonta aos tempos da escravidão. O Brasil foi o país que mais escravizou a população negra, a que o fez por mais tempo e a última nação a abolir a escravidão. E quando o fez, deixou a população negra aos Deus dará, sem garantias sociais, educação de base, terra para plantar etc. O resultado é uma mentalidade que desconsidera o trabalhador a ponto de muitos empresários – sejam de grande, médio ou pequeno porte – acharem que estão fazendo um grande favor quando empregam pessoas. E o trabalhador, vítima dessa mesma mentalidade, crê que o empresário está, de fato, prestando esse favor. Na verdade, estamos alugando nossa força produtiva em troca de um provento mensal. Caso o pagamento, a carga horária e similares não estejam de acordo com o combinado, o funcionário está no direito de reivindicar para que o combinado seja cumprido. Mas como tem medo do tronco do desemprego, acaba se calando e se humilhando. Mudar essa mentalidade é um longo caminho a percorrer, mas precisa ser percorrido.
Partindo para os casos mais graves, chegamos aos homens e mulheres resgatadas de locais em que são obrigadas a trabalhar em condições análogas à escravidão. Recrutadas geralmente de regiões pobres do Brasil com promessas de ganhos satisfatórios, tais pessoas, ao chegarem ao local, são tratadas como prisioneiras, ou seja, não têm o direito de sair e nem de se comunicarem com parentes e amigos. Para exercerem a função para a qual foram recrutadas, têm de comprar o próprio equipamento a preços exorbitantes. Como ainda não receberam, contraem dívida, que aumenta pelo fato de terem de adquirir, na mercearia montada no local, os próprios mantimentos, também a preços bem acima da média. Com isso, as dívidas se tornam impagáveis. Somam-se a esse cenário as jornadas extenuantes e sem direito a folga, péssimas condições de higiene dos banheiros e cozinhas, alojamentos nada confortáveis e até surras, mordidas, choques elétricos e spray de pimenta na cara dos que ousam se rebelar.
Um dos casos mais emblemáticos e escandalosos ocorreu no início de 2023, quando mais de 200 homens recrutados na Bahia foram flagrados nas condições acima descritas em vinícolas do Rio Grande do Sul. Recrutados para colherem uvas, acabaram se tornando cativos dos sinhozinhos e feitores da atualidade. A consequência foi o horror dos dias de martírio, até que três dos contratados conseguiram fugir e denunciar o caso, que ganhou repercussão nacional.
As três vinícolas envolvidas no caso atribuíram a responsabilidade à empresa terceirizada encarregada em contratar esse tipo de mão de obra. O gerente regional do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), no entanto, ressaltou: "As pessoas que tomaram esse serviço, as pessoas que foram beneficiadas por esse serviço, também podem ser responsabilizadas. Chamamos isso de responsabilidade subsidiária. Primeiro, o empregador tem a responsabilidade. (...) Se ele [o proprietário da vinícola] não pagar, as pessoas que trabalharam em determinada vinícola, que prestaram o serviço lá, podem cobrar, e nós vamos chegar nesse ponto, dessa vinícola que se beneficiou desse trabalho. (...) Tu tens que saber quem tu estás contratando, tu tens que ter essa responsabilidade de examinar se ele oferece as condições [adequadas] e os direitos [legais].”
Allan Kardec, em “O livro dos espíritos”, no capítulo referente à lei do trabalho, indaga, na questão 684, o que se deve pensar dos que abusam da autoridade que possuem para impor excessivo trabalho aos subordinados. A resposta é clara e concisa: “Isso é uma das piores ações. Todo aquele que tem o poder de mandar é responsável pelo excesso de trabalho que imponha a seus inferiores porquanto, assim fazendo, transgride a Lei de Deus”.
Essa transgressão pode se dar tanto por vias diretas (escravidão e jornadas de trabalho além da conta numa loja, por exemplo) como também por vias indiretas, como nas já citadas horas extras nunca recebidas e pagamento fora do dia combinado, o que deixa o trabalhador sem ter como pagar as contas em dia. E também se dá na proibição de pausas para o lanche, quando a mulher é demitida por estar grávida, quando os sindicatos são enfraquecidos por políticas públicas para que o trabalhador tenha a voz esmorecida e também quando as leis trabalhistas são flexibilizadas, resultando na perda de direitos e também no enfraquecimento do Ministério do Trabalho. Por isso, é importante ajudarmos a eleger governantes que tenham pensamentos condizentes com o que preconizam os ensinamentos cristãos à luz da imortalidade da alma.
Pulo para a questão 830, que está contida no capítulo sobre a lei de liberdade. Nela, Kardec pergunta se, nos casos em que a escravidão faz parte dos costumes de um povo, seriam passíveis de censura os que dela se aproveitam, embora só ajam assim pelo fato de o uso de mão de obra escrava estar naturalmente inserido nos costumes dessa ou daquela nação. O plano espiritual rebate dizendo que quem tira proveito da escravidão é sempre culpado, já que transgride uma lei da natureza (a da liberdade). Se o costume, no entanto, está estabelecido há muito tempo no seio de uma sociedade pouco desenvolvida moralmente, esta responsabilidade é relativa e tenderá a aumentar se, à medida que o homem for evoluindo e extinguindo a escravidão, ainda houver gente que nela insiste em proveito próprio. É o que vemos no Brasil, onde a mentalidade escravagista é reproduzida diariamente na forma como a população negra é tratada e também nas explorações e desconsiderações trabalhistas que tanto nos indignam.
No caso das vinícolas gaúchas e de outros tantos similares que ainda acontecem em nosso país, vemos homens abastados ainda vinculados a uma mentalidade que põe o lucro acima de tudo e desconsidera os direitos de seus irmãos em humanidade. Pior: aproveitam-se de uma condição de vulnerabilidade social para impor o seu talante muitas vezes xenofóbico e racista. Para esses, conforme estipula o encerramento da questão 830 de “O livro dos espíritos”, não há desculpa.
Marcelo Teixeira
BIBLIOGRAFIA:
1. KARDEC, Allan – O Livro dos Espíritos. 60ª edição, 1984, Federação Espírita Brasileira, Brasília, DF.
2. MADE FOR MINDS (matéria não assinada) – O caso do trabalho análogo à escravidão em vinícolas do RS. Disponível em https://p.dw.com/p/4OAX5
TALARICO, Fernanda; COUTO, Larissa – Cordeiros de carnaval na Bahia reclamam de discriminação e baixo pagamento. Disponível em https://www.uol.com.br/carnaval/noticias/redacao/2023/02/17/cordeiros-de-carnaval-na-bahia-reclamam-de-discriminacao-e-pagamento.htm
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