pub-9353041770088088
top of page

Cláudia "Afro" Leitte

Não se trata de negar sua fé, mas de encontrar formas de expressá-la sem apagar ou desrespeitar outras crenças e culturas


Não se trata de negar sua fé, mas de encontrar formas de expressá-la sem apagar ou desrespeitar outras crenças e culturas
Cláudia Leitte - Reprodução/Instagram

Imaginem Carlinhos Brown, Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Margareth Menezes, entre outro, pegando uma música gospel e trocando nomes em trechos por nome dos orixás ou elementos de matrizes africanas? A reação de quase toda a população brasileira seria de massacre e diriam FATALMENTE que a atitude não era só uma afronta ao cristianismo, como também um desrespeito. Daí, seriam acionados todos os Ministérios, Supremo Tribunal Federal e estes artistas seriam levados à corte dos julgamentos arbitrários das redes sociais.

Nos últimos dias, a cantora Cláudia Leitte tem estado no centro de uma polêmica após anunciar a decisão de alterar o nome de uma de suas músicas, que originalmente fazia referência à orixá Iemanjá, para Yeshua, nome hebraico de Jesus. A mudança foi recebida com aplausos por parte de alguns setores religiosos, mas também gerou forte crítica de quem enxerga na atitude um desrespeito à cultura afro-brasileira e uma manifestação de racismo cultural.

            Cláudia Leitte construiu grande parte de sua carreira e fortuna explorando elementos da cultura afro-brasileira, incluindo gêneros musicais como o axé, que possuem raízes profundas nas tradições africanas trazidas ao Brasil pelos povos escravizados. É contraditório, para dizer o mínimo, que uma artista cuja fama está intrinsicamente ligada à apropriação dessas influências agora negue ou altere simbolismos importantes dessa herança cultural.

O nome “Iemanjá” carrega um significado profundo para muitas comunidades afrodescendentes. Ela é a orixá dos mares, da fertilidade e da proteção, sendo uma figura central em diversas manifestações religiosas e culturais no Brasil. Trocar o nome por “Yeshua” – um termo específico ligado à religião cristã — sugere, ainda que de forma indireta, que um nome é mais “digno” ou “correto” que o outro. Esse gesto não apenas ignora a pluralidade religiosa que forma a identidade brasileira, mas também reforça uma hierarquia simbólica que privilegia crenças cristãs em detrimento das religiões de matriz africana.

Os defensores da mudança argumentam que Cláudia está exercendo seu direito pessoal de expressar sua fé. Contudo, é importante questionar se essa mesma condescendência seria estendida caso o novo nome fosse ligado a crenças menos populares ou demonizadas por grande parte da sociedade. Por exemplo, qual seria a reação se a cantora tivesse alterado o nome da música para fazer referência a uma figura satânica? Não há dúvidas de que as críticas seriam veementes e acompanhadas de boicotes massivos. Isso demonstra como a aceitação ou reprovação de tais atitudes está profundamente enraizada em preconceitos e em uma visão eurocêntrica do que é ou não aceitável.

Se Cláudia Leitte de fato mudou seus princípios e agora busca alinhar sua carreira às suas novas convicções religiosas, é coerente que ela também repense seu repertório como um todo. Muitas de suas canções, incluindo a que foi alterada, são impregnadas de referências à cultura afro-brasileira. Continuar performando essas músicas enquanto altera partes fundamentais de seu simbolismo é uma forma de desrespeito, tanto às obras originais quanto ao público que as consome. Em respeito às comunidades que ajudaram a construir sua história, o mais justo seria deixar de cantar essas músicas, ou, pelo menos, buscar um diálogo sincero com esses grupos antes de tomar decisões unilaterais.

Sob a ótica legal, o Brasil é um Estado laico, e a Constituição Federal garante a liberdade de crença e culto. No entanto, também protege o direito à diversidade cultural e condena o racismo em todas as suas formas. Alterar o nome em uma música que celebra um elemento da cultura afro-brasileira para algo ligado a uma crença específica pode ser interpretado como uma forma de invisibilização cultural, um ato que vai de encontro ao espírito das leis que visam preservar o rico mosaico cultural do país.

A decisão de Cláudia Leitte não pode ser analisada de forma superficial. Não se trata apenas de uma mudança de nome, mas de um gesto carregado de implicações simbólicas e sociais. Em um país onde as religiões de matriz africana ainda enfrentam preconceito e intolerância, atitudes como essa contribuem para reforçar as desigualdades e hierarquias culturais.

Penso que é fundamental que artistas como Cláudia – que devem grande parte de seu sucesso à riqueza cultural do Brasil – reconheçam sua responsabilidade e ajam de forma respeitosa e inclusiva. Não se trata de negar sua fé, mas de encontrar formas de expressá-la sem apagar ou desrespeitar outras crenças e culturas que também fazem parte da identidade do país. O diálogo é essencial, mas, acima de tudo, é preciso consistência e respeito às origens.

Commentaires

Noté 0 étoile sur 5.
Pas encore de note

Ajouter une note
bottom of page
pub-9353041770088088