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A Expansão do Neopentecostalismo em território dos Povos Originários: invasão ou adaptação?

  • Foto do escritor: Renata Freitas
    Renata Freitas
  • 30 de set.
  • 5 min de leitura
Comunidade indígena em ritual vestindo bandeira do Brasil (reprodução/site APIB)
Comunidade indígena em ritual vestindo bandeira do Brasil (reprodução/site APIB)

A Colonização europeia em terras de Povos Originários tem sua base na catequização, na dominação desses povos a partir da cultura e de suas manifestações religiosas. A apropriação de suas cosmologias e cosmovisões de modo a convertê-las e utilizá-las como instrumento. Há 500 anos, esses povos sofrem com esse movimento colonizatório, que passou por algumas fases, até chegarmos ao neopentecostalismo que usa, inclusive, das redes sociais para o recrutamento de novos agentes. Esta matéria se propõe a demonstrar, a partir de dados etnográficos, essa expansão das missões e igrejas evangélicas nesses territórios, e compõe uma série de pesquisas que tem início aqui.

Como parte de uma estratégia de sobrevivência, mesmo que inconsciente, povos oprimidos encontram formas de incorporar a cultura colonizadora em seus modos de vida, em uma tentativa preservar suas memórias e saberes ancestrais, a partir de analogias, metáforas e combinação de mitos e ritos. Como sugere a pesquisa sobre culturas populares e religiões do professor Luiz Antônio Simas, é pelas frestas que o movimento e a vida acontecem. Foi então que, a partir da introdução do protestantismo pentecostal, e utilizando a sua cosmologia animista anterior, a maioria das aldeias, em fase de conversão evangélica, incorpora, ressignifica e cria novas expressões do sagrado.

Desse fenômeno surge uma disputa real e simbólica, personificada em seus líderes sagrados, o Pastor e o Pajé, e se faz necessário criar uma nova categoria de fiéis que surge dessa tensão de poderes simbólicos conflitantes, o "índio-crente", que expressa sua fé a partir do que podemos chamar de "pentecostalismo indígena". Importante observar que essas classificações surgem de uma perspectiva interna, pelo movimento de se apropriar do que lhe é imposto e transformá-lo em algo aceitável.

O que vemos é o resultado da hibridização cultural e sincretismo religioso, de um encontro de tradições indígenas e protestantes evangélicas. E o que permitiu esse sincretismo foi encontrar raízes comuns entre seus fundamentos, mitos e ritos, como a prática sagrada do êxtase espiritual e a busca pela cura. A passagem do xamanismo indígena para o pentecostalismo protestante é um processo facilitado de tradução cultural de seus símbolos, adaptando-os para um diálogo intercultural de convivência. Apesar dessa aparente adaptação em que os ‘índios-crentes"assimilam e ressignificam as formas de atuação do pentecostalismo, criando novas expressões do sagrado, novas ritualidades e experiências religiosas e espirituais, seu exercício continua  mais centrado nos sistemas simbólicos tradicionais e na sua cosmologia xamânica, do que na teologia e práticas pentecostais.

Cerimônia evangélica em território indígena
Cerimônia evangélica em território indígena (reprodução/site CONPLEI)

A evangelização em territórios indígenas encontra-se em estágio avançado, pois conta com igrejas e associações fundadas e compostas apenas por lideranças indígenas, como o Conselho Nacional de Pastores e Líderes Indígenas (CONPLEI). Segundo o Conselho, houve três ondas missionárias nas tribos indígenas. Na primeira, estrangeiros evangelizaram indígenas, com início na década de 1910. Na segunda, brasileiros evangelizaram indígenas, com início nos anos 1950. E na terceira, os próprios índios buscaram evangelizar seus “patrícios” (outros índios); “Assim, as três ondas, estrangeira, nacional e indígena, chegariam com a força de um tsunami espiritual para que a mensagem salvífica do Evangelho chegue até aqueles que vivem em lugares distantes e restritos” (CONPLEI, 2020, site oficial). Em mesmo site, é possível encontrar seu slogan "Em cada povo uma igreja Bíblica genuinamente indígena". Ainda, quando na descrição do que seria o Conselho e de sua missão, visão e valores:

O CONPLEI é apenas um conselho de pastores, com autonomia própria, com senso comum próprio, com características próprias e contextualizado com o jeito indígena, com um olhar mais indígena, pratica e não necessariamente burocrática, burocracia só nas documentações necessárias. CONPLEI, como um movimento propriamente indígena, tem o potencial de ir um pouco mais além que as duas primeiras ondas, podem ir mais rápidos e podem permanecer por mais tempo. Isso porque são indígenas falando com indígenas, isso porque são pessoas que falam a mesma língua, ou uma língua própria, possuem o mesmo senso cultural, possuem a mesma perspectiva de trabalho, a mesma categorização ministerial.
Lideranças da APIB em missão oficial na Europa (reprodução/instagram @apiboficial)
Lideranças da APIB em missão oficial na Europa (reprodução/Instagram @apiboficial)

Em resposta ao pronunciamento de Papa Leão XIV sobre a necessidade de evangelização dos povos originários brasileiros, a APIB se manifestou em seu perfil do Instagram:

Durante um encontro com bispos da região Pan-Amazônica, o Papa Leão XIV reforçou a necessidade de anunciar Jesus Cristo aos povos indígenas, defendendo que a evangelização deve caminhar junto do respeito às culturas e do cuidado com a “casa comum” expressão usada por ele para se referir ao planeta. Mas não podemos nos enganar transformar nossas tradições e espiritualidades em alvo de conversão não é proteção, nem amor. É tentativa de apagar séculos de saberes ancestrais, crenças e rituais que existem há milênios. A verdadeira defesa da Amazônia e de seus povos não passa por imposição religiosa, mas pelo reconhecimento da autonomia, da cultura e da espiritualidade indígena. Os povos indígenas não precisam ser evangelizados, precisam ser respeitados, nossas culturas, nossas crenças e nossas vidas no território são nossa força e nossa resistência!
 Pronunciamento de APIB em resposta ao Papa Leão XIV
Pronunciamento de APIB em resposta ao Papa Leão XIV (reprodução/Instagram @apiboficial)

Na última pesquisa demográfica-etnográfica realizada pelo IBGE, o Censo 2022, há a confirmação dos resultados desse movimento a partir de dados coletados em terras e agrupamentos indígenas. Houve, nesta edição, o aperfeiçoamento de sua forma de captação das respostas sobre religiosidade, para o aprofundamento dessas pesquisas. Enquanto, para a população em geral, a pergunta sobre religião foi: “Qual é sua religião ou culto?”, nas Terras Indígenas e nos Setores Censitários de agrupamentos indígenas, a redação do quesito foi alterada para “Qual a sua crença, ritual indígena ou religião?”.

Essa adaptação foi elaborada para o melhor entendimento desse grupo populacional específico, como explica Marta Antunes, coordenadora do Censo de Povos e Comunidades Tradicionais do IBGE. “As diversas expressões da religiosidade indígena foram reunidas em complexos rituais organizados por etnia ou povo praticante, permitindo assim um registro de crenças e rituais indígenas mais aprofundado”. Aí se incluem rituais de festas, danças e pinturas corporais de momentos rituais específicos, assim como rituais mais vinculados a um povo, como o ritual Yrerua, entre os Uru Eu Wau Wau, exemplifica Marta. (Censo 2022, Agência de Notícias do IBGE)

O percentual de evangélicos na população brasileira saltou de 21,6% em 2010 para 26,9% em 2022. Entre pessoas que se declararam de cor ou raça indígena, 32,2% eram evangélicas e 42,7% católicas. Em termos históricos, análises demográficas mostram que, no conjunto da população indígena, a fili­ação católica caiu de 64,3% (1991) para 45,4% (2022), enquanto a evangélica subiu de 13,6% para cerca de 32,6%, o que significa dizer que, nas últimas três décadas, a proporção de indígenas evangélicos mais do que dobrou. E, mesmo com essa adequação inédita na abordagem dos quesitos específicos aos povos originários, abrindo espaço para manifestações de cultura religiosa indígena, em danças, rituais e crenças, o número de que se declarou em “tradições indígenas” foi muito baixo, de apenas 7,6% dos autodeclarados indígenas, explicitando grande influência das igrejas cristãs nesses territórios. Regionalmente, o crescimento evangélico é mais forte na Amazônia, avançãndo também nos territórios indígenas. Por exemplo, dados recentes de campo na Terra Indígena Vale do Javari (AM) mostram que, em Atalaia do Norte, o número de igrejas evangélicas urbanas cresceu de 14 em 2013 para 44 em 2023. Esse crescimento, associado a intensas campanhas missionárias nacionais e internacionais, ocorre justamente onde vivem povos isolados, motivando tradutores bíblicos e pastores indígenas a se formarem para “salvar almas”.


Lideranças da APIB em missão oficial na Europa (reprodução/instagram @apiboficial)
Lideranças da APIB em missão oficial na Europa (reprodução/Instagram @apiboficial)

Embora esses dados possam nos dar a ideia de que a última onda conservadora chegou nas comunidades tradicionais e que há um movimento neocolonizador ganhando força e adeptos, também é possível observar que esses povos estão, igualmente, organizando-se em espaços de resistência e reafirmando seus lugares nas florestas, aldeias, campo e cidade. Também é estratégia de sobrevivência, assumir os papéis culturais impostos em público, em pesquisas e contextos institucionais, guardando as manifestações de seu sagrado para espaços íntimos. Desde lutas em defesa de seus territórios, até manifestações culturais, agentes políticos engajados e produção intelectual pulsante, nos mostram que seus corpos continuam aqui, no presente de nossa História, e que são igualmente necessários para a construção do futuro de nossa Nação.


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