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PROPÓSITO À VENDA: O Custo Invisível da Busca pelo Sentido num Mundo Exausto

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    Da Redação
  • há 24 horas
  • 3 min de leitura

Psicóloga Maria Klien explica como a cobrança para “ter propósito” altera o corpo, intensifica a ansiedade e transforma a vida em um ciclo de desempenho.


A pressão por propósito é um fenômeno contemporâneo que transforma a busca por sentido em meta externa, gerando estados de alerta, exaustão e desconexão do próprio corpo.
Créditos: Yosef Futsum

Há uma pergunta que parece atravessar silenciosamente todas as rodas de conversa, timelines, consultórios e até entrevistas de emprego: qual é o seu propósito? Na prática, a palavra virou exigência, uma espécie de senha emocional para garantir relevância, busca pelo sentido da vida, pertencimento e até valor humano na sociedade hiperprodutiva em que vivemos.

Mas o impacto dessa cobrança, tão romantizada no discurso de autoajuda e corporativismo motivacional, está se mostrando mais devastador do que inspirador. A psicóloga Maria Klien, pesquisadora dos efeitos emocionais da ansiedade e do medo, tem observado em consultório um fenômeno crescente: pessoas que adoecem tentando encontrar um sentido enquanto seus corpos seguem presos em alerta permanente.

“O discurso sobre encontrar propósito virou exigência. Muitas pessoas tentam construir sentido enquanto seus organismos seguem em alerta, e o sistema nervoso prioriza proteção em vez de direção. O corpo não organiza caminhos quando precisa garantir continuidade básica”, disse.
A psicóloga Maria Klien - Divulgação
Maria Klien - Divulgação

É uma reflexão que chega em um momento emblemático. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o Brasil segue entre os países com maior taxa de ansiedade no mundo, com mais de 9% da população afetada. Nunca se falou tanto em saúde mental. Nunca se vendeu tanto sobre propósito. E nunca estivemos tão cansados.

Em um tempo em que tudo se converte em performance e narrativa, a busca por sentido virou também um produto. Cursos prometem revelar propósito em sete dias. Mentores oferecem técnicas para desbloquear o caminho ideal. A lógica é sedutora, mas profundamente cruel: transfere para o indivíduo total responsabilidade por uma direção que deveria nascer do ritmo interno, não da concorrência externa.

“A falta de foco, sono irregular, irritabilidade, cansaço contínuo e vazio no meio de realizações podem resultar de vidas guiadas por demandas externas. Quando o fazer domina relevância, o ser se silencia. Então qualquer promessa de direção vira solução pronta oferecida ao consumo”, ressalta Maria Klien.

São sintomas que ecoam nas gerações mais jovens, especialmente entre adultos de 20 a 35 anos, bombardeados por métricas de sucesso, expectativas profissionais e a ilusão de que uma vida coerente se constrói como pitch de startup. Não é coincidência que pesquisas recentes do Instituto Cactus, de 2024, apontem que quase 60% dos jovens brasileiros sentem que estão “ficando para trás” em relação ao que é socialmente esperado.

“O sentido não nasce sob vigilância. Ele aparece quando há autorregulação, consciência interna e abertura para que padrões deixem de comandar reações automáticas. Propósito não é descoberta externa. Surge quando sistemas internos voltam a dialogar”, afirma.

Na contramão da urgência produtivista, a psicóloga defende uma abordagem mais orgânica, que começa antes do propósito e muito longe das pressões que tentam nomeá-lo. É preciso, segundo ela, criar ambiente interno para que o sentido possa emergir. Propósito, na visão de Maria, não é destino final, mas processo vivo.

“O propósito acompanha movimento e mudança permanente. Evolui conforme a pessoa se transforma. Aparece quando ações refletem verdade interna e não apenas expectativas externas”, explica.

É um chamado que dialoga diretamente com os debates contemporâneos de saúde mental, comportamento e estilo de vida. Num mundo que nos pede respostas rápidas, talvez o gesto mais revolucionário seja sustentar perguntas; desacelerar o olhar, permitir que o corpo se reorganize, reconhecer que sentido não é rótulo, é percurso.

Ao final da conversa, Maria deixa uma provocação que ecoa como convite e desafio.

“O que importa agora? O que dentro de mim pede coerência neste momento? Quando a vida interna ganha espaço, a direção se revela sem força ou pressão. Propósito é consequência de um organismo que se reconhece e se regula.”

Em tempos de aceleração contínua, talvez a busca não seja por um propósito, mas pela chance real de sentir, escutar e existir sem pressa. Porque propósito, afinal, não se encontra. Se revela. E só aparece quando a vida, por fim, tem espaço para respirar.




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