Carminho renova a memória do fado e emociona o Rio em noite histórica no Vivo Rio
- Ana Soáres
- há 3 dias
- 3 min de leitura
Há noites em que a arte desce ao palco não apenas para ser vista, mas para transformar. Ontem (23), no Vivo Rio, Carminho protagonizou uma dessas raras travessias. Em seu primeiro show da nova turnê brasileira, diante de uma plateia lotada e absolutamente entregue, a fadista apresentou o repertório de “Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir”, álbum lançado pela Sony Music que mergulha na tradição, mas emerge renovado, ousado, profundo.

O Rio assistiu a algo que ultrapassa o espetáculo. Algo que dialoga com identidade, memória e reinvenção. Carminho canta como quem convoca ancestrais. Como quem se oferece inteira. Como quem se recusa a deixar que a dor seja apenas dor, e a transforma em linguagem, cura e partilha.
A presença de nomes como Fernanda Montenegro, Caetano Veloso, Moreno Veloso, Marisa Monte, Otávio Müller e Bárbara Paz reforça o que o público já pressentia desde os primeiros acordes: aquela era uma noite que entraria para a história recente da música lusófona no Brasil.
Atravessamentos entre Portugal e Brasil
Desde a abertura, cada música foi recebida como reencontro. Entre as canções do novo álbum, “Balada do país que dói”, “Lá vai Lisboa”, “Pela minha voz” e “Saber”, marcada pela participação de Laurie Anderson na gravação original, criaram um silêncio atento que só os grandes artistas conseguem provocar. Carminho alterna fragilidade e firmeza, como quem tateia o mundo com a sensibilidade afiada de quem sabe exatamente o peso de cada palavra.
Mas não foi apenas Portugal que ecoou no palco. Em reverência carinhosa, a fadista incluiu no repertório “Chuva no Mar”, composta por Marisa Monte; “Como uma Onda”, de Lulu Santos e Nelson Motta; além de “Sabiá”, obra de Tom Jobim e Chico Buarque, que ela própria já havia eternizado em gravação de 2016. A plateia respondeu com nostalgia, como se assistisse ao reencontro de dois países que sempre cantaram a mesma dor, o mesmo afeto, a mesma saudade.
Ao final, o público se levantou para aplaudir. Não por gentileza, mas por comoção.
A intimidade de quem retorna ao lugar onde foi feliz
No meio do espetáculo, Carminho se abriu ao público. Disse que há quem recomende não voltar aos lugares onde se foi feliz. Mas que ela não acredita nisso. “O Brasil é casa. A primeira vez que vim foi de navio. Cada retorno me revigora”, afirmou, arrancando murmúrios emocionados de uma plateia que sentia o mesmo.
Há algo de profundamente político no gesto de retornar. De insistir no afeto. De recusar o esvaziamento que o mundo acelerado produz. Carminho não apenas canta fado. Ela restaura um pacto com o sentimento coletivo.

Fado, eletricidade e invenção
No palco, a cantora apresentou uma sonoridade que amplia o fado sem o diluir. A tradição esteve representada pelos instrumentos clássicos, como a guitarra portuguesa e a viola de fado. Mas eles dialogaram com a guitarra elétrica, o Mellotron, o Cristal Baschet e as paisagens sonoras de Ondes Martenot. Um encontro improvável, mas profundamente harmonioso.
Carminho vem de uma linhagem que inclui Maria Teresa de Noronha, Beatriz da Conceição e Teresa Siqueira, sua mãe. E ainda assim, ousa ser nova. O fado, nela, torna-se corpo contemporâneo. Suas escolhas estéticas respondem à urgência do presente, ao desejo de se comunicar com uma geração que equilibra melancolia e velocidade.
Na banda, André Dias comandou a guitarra portuguesa com precisão afetuosa. Flávio Cardoso assumiu a viola de fado. Tiago Maia no baixo acústico ofereceu densidade. Pedro Geraldes trouxe o pulso da guitarra elétrica. E João Pimenta Gomes expandiu horizontes com Mellotron, Ondes Martenot e Cristal Baschet. Juntos, criaram um cenário emocional que parecia respirar junto com a artista.
A turnê segue
Depois da noite memorável no Rio, Carminho segue para São Paulo, onde se apresenta hoje no Cultura Artística. Na quarta-feira, encerra este primeiro trecho da turnê em Brasília. Cada apresentação carrega a promessa de novos encontros entre a tradição portuguesa e o coração multicultural do Brasil.

O que fica depois que a última nota termina
Em um mundo que tenta nos acostumar ao superficial, eventos como o de ontem lembram que a arte ainda tem fôlego para nos estremecer. Carminho devolve ao público a possibilidade de sentir profundamente, sem medo. Essa talvez seja a maior resistência.
E aqui fica a pergunta que a Pàhnorama propõe ao leitor: o que fazemos, individual e coletivamente, para preservar os espaços onde a emoção ainda tem lugar para existir? Porque, se a música continua abrindo caminhos, cabe a nós impedir que eles se fechem.



