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O estilista Fernando Viana entre o rústico e o refinado: a arte de vestir e o upcycling como manifesto

  • Foto do escritor: Renata Freitas
    Renata Freitas
  • há 4 dias
  • 6 min de leitura

Como um criador que transita entre a costura clássica da Dior e a rebeldia do upcycling transformou sua trajetória em uma obra de arte viva.


Exposição Entre Linhas no Parque Glória Maria
Exposição Entre Linhas no Parque Glória Maria (arquivo pessoal)

Fernando Viana, o estilista e artista plástico, que transforma o descarte em luxo, reuniu suas obras em Exposição Entrelinhas, comemorando 25 anos de trabalho em Upcycling. Através do reaproveitamento de resíduos têxteis e pintura em tecido, transforma o descartado em valor inestimável. Nascido em Uruguaiana–RS, cidade que faz fronteira com Argentina e Uruguai, aos nove anos foi colocado na escolinha de arte, por sua mãe, em uma tentativa de controlar sua rebeldia na escola. Enquanto sua mãe pintava tecido para amigas e colegas, seu pai tinha a escultura como hobby e trabalhava no carnaval e como voluntário num festival de música nativa como produtor de palco, não é difícil entender o talento de Fernando para as artes. A Revista Pàhnorama foi convidada para o coquetel de encerramento da exposição, no Parque Glória Maria, no Rio de Janeiro, e Fernando nos concedeu uma entrevista contando um pouco de sua história. Em seu perfil do Instagram, conta sobre esse trabalho:


ENTRE LINHAS: um percurso poético feito de costuras, memórias e reinvenções. Há mais de 25 anos, venho criando uma arte que respira com a natureza, onde moda, sustentabilidade e afeto se entrelaçam. Desde os anos 90, transformo resíduos têxteis em peças únicas que provocam o olhar e sugerem novos modos de existir e vestir. De Londres ao meu ateliê em Santa Teresa, sigo costurando intenções, histórias e futuro. Minha prática é um manifesto: o descarte pode ser o começo.
Fernando Viana comenta sobre repercussão de sua exposição (reprodução/Instagram @fernando_avv)

Formado em Publicidade e Propaganda pela PUC de Porto Alegre, abriu uma agência de publicidade, começando pela fotografia preto e branco em 35mm, em que fotografava apenas retratos e fazia uma exposição anual na galeria de arte local. Após sete anos, em 1998, começou a fazer encartes de moda para Zero Hora. No mesmo ano, foi para Londres estudar inglês, juntando um dinheiro para ficar alguns meses sem trabalhar, repensando sua vida. Aproximadamente seis meses depois, ainda sem definições sobre trabalho, saiu de noite para caminhar e encontrou um lixo enorme de camisetas pretas inacabadas, amostras de tecidos em várias cores e texturas. Após coletar tudo, comprou uma agulha de artesanato, uma linha de algodão branco e começou a emendar, remendar e criar com todo aquele material descartado pela indústria da moda. Com algumas peças, foi para Porto Belo Road Market, no Nothing Hill, vender elas.


Exposição Entre Linhas no Parque Glória Maria (arquivo pessoal)
Exposição Entre Linhas no Parque Glória Maria (arquivo pessoal)

Não foi a fama que guiou seus passos na moda. “Fama nunca foi meu objetivo maior. Sempre segui meu coração e respeitei minha alma artística”, diz o estilista, lembrando os primeiros anos em Londres, no final dos anos 1990. Foi lá que recebeu um conselho da Diretora de moda da Westminster College que moldaria sua trajetória: aprender técnica apenas como ferramenta e preservar seu estilo instintivo.

Na London College of Fashion, a diretora Basia Szkutnicka não só abriu portas como também o convidou para seu primeiro desfile em 1999. Entre cursos e mestres, um em especial marcou sua memória: uma costureira refugiada da Segunda Guerra, que havia trabalhado para a Chanel, apresentou-lhe o rigor da modelagem Dior. “Adaptei estas técnicas ao meu estilo: o rústico com o refinado, o acabamento sem acabamento. Era reflexo de uma vida entre o campo e a cidade.”


Exposição Entre Linhas no Parque Glória Maria (arquivo pessoal)
Exposição Entre Linhas no Parque Glória Maria (arquivo pessoal)

Hoje, prefere nem chamar o que faz de moda. “Não sigo estações, não penso em paletas do ano. Uso a roupa para vender minha arte”, afirma. Para ele, vestir é gesto político, atitude, liberdade. Essa perspectiva o afasta da lógica das passarelas ditadas pelo mercado e lhe dá autonomia criativa. É nesse espaço que surgem suas misturas singulares: couro, rendas, pinturas e bordados se encontram em peças que carregam saudade, melancolia e memória.

Quando você começa a ver o seu estilo em videoclipes e nas vitrines de grandes lojas — fiz alguns acordos para usarem e copiarem as peças — você sabe apenas que está fazendo algo bom. Apenas isto. Foi quando eu vi o videoclipe da “ Destiny child - Survivor”, que usavam roupas inspiradas no que eu estava fazendo no momento,  logo após estas roupas de couro — inspiradas em roupa de lida de peão do sul — estavam em todos os lugares de Londres. E é assim mesmo que nascem estilos. Na rua, espontaneamente  e naturalmente assim. Isto está ficando mais difícil agora que a rua e o cenário urbano não fazem mais parte deste laboratório. A internet e as mídias sociais entraram e tiraram esta experiência natural legítima da sociedade. A vertente criativa que tínhamos antes mudou. 
Exposição Entre Linhas no Parque Glória Maria (arquivo pessoal)
Exposição Entre Linhas no Parque Glória Maria (arquivo pessoal)

Se Londres lhe ofereceu a efervescência de um mosaico cultural aberto a ousadias, o retorno ao Brasil em 2013 revelou outro cenário. “Aqui, os espaços para pequenos artesãos e artistas ainda são muito limitados. Vivemos na mentalidade dos shoppings e das parcerias unilaterais, onde o artista ganha pouco.” O contraste o fez perceber a urgência de repensar a economia criativa brasileira. "Existem vários mercados de arte abertos para quem quiser experimentar em Londres. E um sistema educacional profissionalizante excelente que inclui imigrantes", lembra Fernando sobre as diferenças culturais. "Temos algumas feiras mas com custo muito alto para pequenos e edições esporádica. As feiras populares são organizadas para modinha”, ainda. "Faltam projetos viáveis para pequenos produtores em espaços fixos com acesso fácil", ele cita o edifício Behring, no Rio, como exemplo de potencial desperdiçado por falta de incentivos e acessibilidade.

A sustentabilidade não chegou como conceito acadêmico, mas como necessidade visceral.

“O upcycling surgiu para mim como resposta ao desperdício. Eu via sacos de lixo cheios de restos têxteis e pensava: isso é matéria-prima.”

Vestidos de noiva feitos a partir de sobras são parte dessa alquimia. Criado em um lar onde mãe pintava tecidos e pai esculpia madeira, sempre ao som de música, transformar era natural.


Exposição Entre Linhas no Parque Glória Maria (arquivo pessoal)
Exposição Entre Linhas no Parque Glória Maria (arquivo pessoal)

Hoje, vê o movimento da moda sustentável avançando, mas ainda carente de uma identidade brasileira. “Ainda precisamos valorizar o luxo do lixo. No Brasil, seguimos dependendo da legitimação das grifes internacionais para enxergar valor no artesanal. Falta acreditar na nossa própria potência.”. Lembra que apenas 1% do volume global têxtil é reciclado, ressaltando os pontos fortes desse movimento e de se repensar as formas de consumo: grandes marcas produzem grandes volumes através de exploração humana, em muitos casos; o preço muito baixo das ultra fast-fashions significam, muitas vezes, mão de obra escravizada e condições de trabalho degradantes; investir no Slowfashion é investir em vários pequenos independentes, gerando riqueza e diversidade cultural, distribuindo e fortalecendo a economia local.

Ao refletir sobre a moda nacional, sua visão é crítica, mas também apaixonada.

“Somos uma colcha de retalhos culturais. Temos a maior floresta do mundo, lendas, xamanismo, tribos indígenas, um litoral imenso, influências africanas, portuguesas, italianas, alemãs… e ainda o Carnaval, o qual é o maior laboratório criativo que já vi.”

Para ele, a identidade brasileira está pronta, mas ainda carece de coragem para assumir sua exuberância sem se dobrar às tendências estrangeiras.


Exposição Entre Linhas no Parque Glória Maria (arquivo pessoal)
Exposição Entre Linhas no Parque Glória Maria (arquivo pessoal)

Questionado sobre as inspirações para seu trabalho, seus olhos sempre se voltaram para a natureza — cores, texturas, desenhos — e para as artes. Mas gosta, sobretudo, de criar com o que o acaso traz. “Adoro transformar um casaquinho triste e manchado em obra de arte.” Entre estilistas, cita Alexandre McQueen como referência admirada, mas também como símbolo das pressões cruéis de um sistema que consome mentes criativas.

Ao final da entrevista, sua síntese é clara e direta:

  • “Small is beautiful”: qualidade acima da quantidade;

  • Consumo inteligente e tecidos naturais que respiram;

  • Pensar mais no consumo inteligente ao criar;

  • Utilizar tecidos naturais que respiram;

  • Ousar, experimentar, inovar e sair do padrão;

  • Ver qualquer sobra têxtil como matéria-prima para criar muitas coisas;

  • Pesquisar e criar peças com conteúdo e alma;

  • Colaborações devem ser bem-vindas;

  • Cópias são elogios e mostram que você está fazendo algo desejável.

Porque, como ele mesmo conclui:

“É assim que nascem estilos: na rua, espontaneamente e naturalmente.”


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