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Funk e cancelamento: cultura ou ameaça?

  • Foto do escritor: Renata Freitas
    Renata Freitas
  • 12 de jul.
  • 7 min de leitura

A elite ainda demoniza a cultura periférica?


baile da furacão 2000
Baile da Furacão 2000 (reprodução/instagram @furacao2000)

Notícias sobre a prisão de um rapper e um funkeiro tomaram as redes sociais e veículos de informações nos últimos meses. Marlon Brendon Coelho Couto da Silva, Mc Poze do Rodo, cantor de “funk proibidão” e ex-traficante que já admitiu ter sido “vapor” no tráfico até 2016. Em 29 de maio de 2025, foi preso pela Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) suspeito de apologia ao crime e possível ligação com o Comando Vermelho, sendo acusado de realizar shows em comunidades dominadas pela facção com presença de armamento pesado. Já havia sido investigado anteriormente por apologia e tráfico, e chegou a ser absolvido por falta de provas em 2020. Solto em 2 de junho de 2025, após habeas corpus concedido por um desembargador que considerou a prisão exagerada e desproporcional, ressaltando que a apologia à violência ainda é discutível. Gerando grande repercussão, sua detenção foi comparada à criminalização da arte periférica, causando indignação contra o espetáculo midiático do uso de algemas sem a menor necessidade e da condução do Mc até a delegacia de forma degradante. O uso do poder simbólico das imagens para passar um recado e como mais uma ferramenta de dominação pelo medo.

Em situação similar, em 20 de fevereiro desse ano, Oruam, rapper e filho de Marcinho VP, chefe do Comando Vermelho, foi detido após fazer manobra perigosa, conhecida como “cavalo de pau”. Em blitz na Barra da Tijuca, apreendido sem habilitação e com a carteira suspensa, foi liberado após pagar fiança. Uma semana depois, foi preso novamente após abrigar em sua casa um foragido acusado de organização criminosa. Foi detido em flagrante, mas liberado com Termo Circunstanciado. Segundo análises da imprensa, a manobra de carro foi, possivelmente, uma estratégia de marketing, ocasionando ao rapper o apoio de seus fãs, como um representante das vozes periféricas injustiçadas e críticas quanto a sua postura irresponsável de utilizar de seus privilégios financeiros proporcionados pelos frutos de seu trabalho e suas ligações familiares com o chefe do tráfico de uma das maiores facções do país. Estes dois casos ilustram questões centrais para essa discussão: a arte periférica tanto incomoda que a Elite se vale de sua influência para a manutenção de seus privilégios, utilizando até mesmo do aparelho estatal para tanto; para além do racismo estrutural, que não é novidade quando pensamos sobre expressões culturais periféricas subjugadas às expressões culturais das classes dominantes, a questão financeira é central nessa tentativa de controle; mas, apesar do rap e do funk movimentarem milhões anualmente, os acessos proporcionados por grandes quantias de dinheiro ainda são limitados, não há o poder de decisão e influência estatal, este ainda permanece nas mãos de herdeiros de grandes fortunas ou carreira política.

Documentário ‘Funk: made in Brasil’, produzido pela Globonews (reprodução/instagram @furacao2000)

Segundo a Wikipédia, o funk carioca movimentava cerca de R$ 10 milhões por mês no estado do Rio de Janeiro entre 2007 e 2008, o que equivaleria a R$ 120 milhões ao ano só por esse mercado regional. Nos últimos 5 anos, a produtora GR6, referência no funk, negociou mais de R$ 220 milhões em parcerias, ou seja, em torno de R$ 44 milhões por ano só em parcerias. Em 2024, a GR6 faturou R$ 10 milhões apenas com publicidade no primeiro semestre, o que sinaliza projeção de R$ 20 milhões em publicidade por ano. Se considerarmos shows, publicidade e streaming, o funk pode gerar entre R$ 200 a R$ 400 milhões por ano no Brasil, somando grandes produtoras e o ecossistema periférico.

No Spotify, o consumo de rap, trap e funk quase dobrou entre 2022 e 2023, passando de 1,1 para 2,1 bilhões de streams. Produtores, plataformas e a Bilboard apontam que o rap e trap se consolidaram como o maior gênero musical, junto ao funk, no Brasil, com mais de 20% das músicas nas rádios e plataformas incluindo artistas urbanos. Estima-se, o faturamento dessas três manifestações combinadas, em aproximadamente R$ 300 a  R$ 600 milhões por ano.

Cidinho e Doca - Faixa do DVD Clássicos do Funk da Furacão 2000. (reprodução/instagram @furacao2000)

Levantamento exclusivo realizado pela Pro-música, entidade que representa as principais gravadoras e produtoras fonográficas do Brasil, apresenta um ranking exclusivo com as 50 músicas mais acessadas nas plataformas de streaming no Brasil no primeiro semestre de 2025. Após sete anos consecutivos com o sertanejo no topo do ranking anual da Pro-Música, o pagode volta a liderar a preferência nacional em um semestre, sendo um pagode a faixa mais ouvida nas principais plataformas digitais no país, marcando o retorno do gênero à liderança das paradas. A preferência pela música brasileira continua refletida no ranking e das 50 músicas mais tocadas, apenas três são estrangeiras. Considerando as 10 mais tocadas no país, a música urbana ganha novo protagonismo, com quatro faixas de trap e funk, incluindo nomes como Mc Tuto, Mc Glenner, Mc Paiva Zs e Oruam.

Outro fato que nos dá indícios da potência desses movimentos periféricos como ameaça aos privilégios de uma certa elite, é que suas narrativas são expostas, aceitas e validadas pelo mercado internacional. O rap brasileiro não tem a mesma força internacional do hip-hop norte-americano, mas está ganhando espaço em nichos culturais, plataformas digitais e festivais alternativos. A língua portuguesa limita o alcance global, mas a força estética, os temas sociais e a qualidade musical têm chamado atenção de audiências na Europa, América Latina e África. O rap brasileiro já aparece em playlists globais do Spotify como Global Hip-Hop e Pride Brasil, e o YouTube o impulsiona para mercados de língua espanhola. O funk é o gênero brasileiro que mais conquistou a cultura pop global nos últimos anos, especialmente entre DJs, produtores internacionais e dançarinos urbanos.

Tem batida universal, semelhante ao reggaeton e afrobeat, o que facilita a adoção por outras culturas. O funk brasileiro está na moda, na dança e na estética urbana internacional, como é possível observar na trend viral surgida nas redes sociais intitulada "brazilcore", com a aderência de grandes personalidades com o artista Bruno Mars, em sua passagem pelo país. DJs como Diplo, Skrillex, Major Lazer e Pedro Sampaio remixaram ou samplearam funk brasileiro em sets tocados em festivais como Coachella e Tomorrowland. Apresenta-se como um produto de exportação potente com batida universal e forte presença em TikTok, Spotify, moda e dança, o funk está cada vez mais inserido no mainstream global.

Campanha da Paco Rabanne, intitulada “Do Anoitecer ao Amanhecer” (reprodução/youtube @Rabanne)

Um outro exemplo recente da aceitação do funk pelo mercado internacional, inclusive de luxo, que também abre espaço para discussão quanto à apropriação cultural, é a campanha da Paco Rabanne, intitulada “Do Anoitecer ao Amanhecer” para a coleção High Summer 2025, que homenageia de forma intensa a cultura do funk carioca e a estética da favela, com foco especial no universo da Rocinha. Filmada em locações reais da Rocinha, a campanha celebra o funk como força cultural e social, com foco em elementos do dia e da noite da comunidade. A grife relembra o legado de seu fundador Paco Rabanne, que nos anos 1980 criou uma gravadora de funk e soul em Paris e foi pioneiro na valorização de modelos negras. As imagens são assinadas por Melissa de Oliveira, artista visual nascida no Morro do Dendê, que captura a rotina da favela com sensibilidade e autenticidade e o vídeo reúne mais de 70 participantes da comunidade, entre 20 dançarinos, DJs e frequentadores de bailes funk. Cenas de passinho, rituais de beleza, acrobacias de moto, tranças, cores vibrantes, festas e ligações afetivas entre vizinhos estão presentes ao longo do dia até a madrugada. A trilha musical mescla sons do funk carioca, como MC Neguinho, MC Marlon e MC Hollywood, com clássicos da MPB, como “Manhã de Carnaval”.

As peças da coleção traduzem o espírito da favela em crochês coloridos, lantejoulas douradas, cortes pós-praia e turbantes, evocando o baile funk com sofisticação. A campanha é polêmica e levanta uma discussão importante porque, embora muitos celebrem a visibilidade e protagonismo locais, críticos apontam a gentrificação estética, fenômeno que traz a cultura periférica para o mercado global de luxo sem retorno justo para a comunidade. A campanha é um olhar internacional sobre o funk carioca, centrado na vitalidade da periferia, no empoderamento local e na estética que conecta rotina, baile e cultura. É uma celebração potente e controversa, que escancara sua hipocrisia para a Elite que se vale de seus privilégios de acesso ao mercado de luxo como algo superior e que mantém seu poder simbólico. O mesmo mercado, agora, reconhece as múltiplas vozes periféricas como dignas de serem ouvidas e validadas.

O argumento para a criminalização das expressões culturais marginalizadas é a ideia preconceituosa de que estes gêneros musicais, que cantam sobre a realidade social de seus territórios, denunciando o desamparado e a ausência total do Estado nessas regiões, favorecem o empobrecimento cultural e intelectual de sua população, com a mágica capacidade da música de influenciar jovens a cometerem crimes. Difícil é reconhecer que o que influencia a prática de crimes são exatamente as desigualdades sociais impostas pela manutenção de privilégios dessa Elite e a ausência do Estado como provedor de condições mínimas e dignas de existência, sobrevivência e vivência.

Thiago de Souza, Thiagson nas redes sociais, é professor de Música Clássica e faz doutorado em Funk pela Usp, um intelectual de nosso tempo essencial para essa discussão, e faz esse trabalho didático em suas redes. Em participação recente no videocast da Gazeta de São Paulo, fala sobre como não pode haver esse discurso competitivo em que se considera música clássica, bossa nova ou jazz superiores ao funk porque são de tempos e contextos histórico-sociais diferentes e, por isso, não estão competindo. Afirma que: "essa diferenciação entre música é uma diferenciação que reflete as disputas simbólicas no campo social". A ideia de que a música clássica é superior se cria pela sua representação da aristocracia e das igrejas, que eram as instituições que detinham o poder econômico na época, associando-a a riqueza.

Apesar da indústria ainda ser dominada por homens, o rap e o funk femininos figuram a vanguarda desse movimento de assumir o protagonismo, em que suas letras são verdadeiros manifestos de resistência e didática, pois se aprende sobre sobrevivência, em primeira mão, na contemporaneidade de um mundo feito por homens para homens. Onde não apenas o recorte racial e de classe se inserem, mas o recorte de gênero como ponto central de partida, muitas vezes. Aqui, é bom salientar: a luta não é pela visão binária de mundo, de homens cis contra mulheres cis na briga pela dominância. A luta é pelo reconhecimento da igualdade a tal ponto que não haja a menor necessidade de categorizações e, portanto, subjugação entre rap/funk feminino e masculino.

Big D - Duquesa (reprodução/youtube @duquesa)

Estamos no início do processo de formação de uma identidade brasileira, após séculos de um processo violento de dominação dos corpos e da natureza, e da união de muitas culturas que convergem em um território de dimensões continentais. A produção cultural em todas as suas dimensões, incluindo a música, a estética e a moda, são fundamentais nesse processo. Estamos, pela primeira vez em muitos anos, construindo as condições favoráveis para a retomada do poder de narrativa, a possibilidade de contar nossas próprias vidas e, porque não, lucrar com isso, já que antes apenas os poderes dominantes o faziam. Cantar, escrever ou expressar por qualquer linguagem artística as mazelas sociais de seu tempo, não pode ser criminalizado e nem ser entendido como a causa dos problemas. A arte pode, ao contrário, ser uma importante ferramenta de diálogo e transformação.

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