Tive um colega de infância a quem chamarei de Décio. Ele era vizinho de um casal de tios que sempre visitávamos. Décio era um tanto quanto difícil de lidar. A prova disso é que os demais garotos da vizinhança não gostavam dele. Encrenqueiro, metido a valentão e ao mesmo tempo chorão, Décio era um prato cheio para a gurizada, com quem vivia em atritos.
Eu e meu irmão nos dávamos bem com Décio. E com os primos dele, que moravam no mesmo bairro, bem ao lado da casa dele. Certa vez, uma de sua primas, mais velha que nós, estava chamando a atenção de Décio, não me lembro por quê. Acho que ele queria ir junto com ela e uma amiga a um mercado próximo. Como ele era birrento e atrevido, começou a insistir. Foi quando a prima disse que iria chamar o Bico Doce. Para quê? Décio prorrompeu em prantos. Chorou copiosamente, com medo do tal indivíduo. Eu regulava em idade com ele. Devíamos ter uns 7 anos. Na hora, fiquei sem entender quem ou o que seria aquele tal de Bico Doce e por que ele causara tamanho pavor no meu amigo.
Já havia tomado conhecimento de outros ‘parentes’ do ser de bico adoçado. Marcus, meu irmão, por exemplo, tinha medo do Homem da Cordinha. Como Marcus era muito espevitado e adorava soltar a mão dos meus pais e sair correndo feito um foguete, minha mãe dizia que, se ele se atrevesse a sair de perto dela, o Homem da Cordinha iria pegá-lo, amarrá-lo e levá-lo embora. Não me recordo de ter testemunhado tal ameaça. Sou mais novo. Além disso, sempre fui tranquilo. Marcus era rueiro; eu, o caseiro. Portanto, nunca fui advertido, ou melhor, ameaçado dessa forma.
Havia também o Homem do Saco. Um ser que poderia aparecer, enfiar a criança arteira num saco de pano e ir embora com ela para nunca mais. Muitos meninos e meninas morriam de medo, assim como tremiam só de pensar no Bicho Papão, que também poderia surgir do nada e abocanhar os capetas em forma de guri.
Isso tudo me veio à tona porque li recentemente, numa rede social, a seguinte postagem: “A ameaça de ‘comunismo’ exerce o mesmo papel do ‘homem do saco’ para adultos com capacidade cognitiva reduzida”. De fato, é vasto o número de gente que entra em pânico diante de uma ameaça comunista. Ela voltou há alguns anos, inclusive. E veio acompanhada de sandices como kit gay, mamadeira fálica e ideologia de gênero.
O medo de comunismo é antigo no Brasil. Em artigo publicado no site do jornal “The Intercept Brasil” em setembro de 2018, o jornalista Alexandre Andrada fala sobre essa farsa historiográfica engendrada por um partido político bastante conservador que existiu no País em meados do século passado – a União Democrática Nacional (UDN). Um partido que, convém frisar, era o queridinho da grande imprensa e de setores conservadores da classe média (sempre ela!). A UDN, no entanto, não era o partido favorito dos eleitores. Por isso, vivia perdendo. Tudo bem semelhante aos acontecimentos políticos tupiniquins de 2002 para cá. Quando pouco ou mal sabemos sobre nossa História, nada aprendemos com ela e tendemos a repeti-la.
Segundo Andrada, tudo começou em 1946 devido a uma briga envolvendo os partidos políticos então dominantes: a UDN, que tinha como principal nome o deputado Carlos Lacerda; o Partido Comunista Brasileiro (PCB) do senador Luís Carlos Prestes; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), de Getúlio Vargas e João Goulart; além do Partido Social Democrata (PSD), do qual Juscelino Kubitschek, que seria presidente da república de 1956 a 1960, era um dos membros. Essa farsa que mancha nossa História teve o apogeu em 1964, quando houve o golpe militar para livrar o Brasil da suposta – e mentirosa – ameaça comunista.
A UDN, durante os 20 anos em que viveu às turras com os demais partidos, tentava, de acordo com o apurado pelo jornalista, provocar uma cisão política no país por meio de notícias e editoriais falsos que falavam sobre o risco iminente de o Brasil virar comunista. Tanto que, em 1947, a justiça tornou ilegal a existência do PCB e cassou o mandato de seus membros.
Os udenistas adoravam odiar e odiavam perder. Mas perdiam. Perderam para Getúlio em 1950 e para Juscelino em 1955. Em ambas as ocasiões, se utilizaram de alguns jornais para semear o medo e a paranoia falando sobre a ameaça comunista que poderia tomar o país de assalto. Balela! Fizeram pior, no entanto: tentaram dar golpes, que foram devidamente abafados e debelados pelas forças legalistas, garantindo, assim, a continuidade do processo democrático.
Chegou, contudo, o ano de 1960. Com ele, um candidato a presidente que era governador de São Paulo. Um homem que era um fenômeno político e vinha com um discurso moralista que prometia varrer a corrupção. Um candidato que a UDN resolveu apoiar: Jânio Quadros. Como ele venceu as eleições, a União Democrática Nacional parecia finalmente ter chegado ao poder, e para ficar por um longo período! Só que, meses depois, Jânio renunciava alegando “forças ocultas”.
Àquela época, presidente e vice-presidente não compunham a mesma chapa. O eleitor votava em ambos separadamente. Como Jânio renunciou, assumiu quem o povo escolhera, por voto direto, para ser o vice: João Goulart, que era do PTB. Foi uma balbúrdia por parte do Congresso, que não queria um herdeiro político de Getúlio Vargas na Presidência. O que fizeram? Tentaram se articular para que Jango (apelido de Goulart) não tomasse posse. E apoiados por parte da cúpula do Exército.
Como a outra cúpula, principalmente a do Rio Grande do Sul de Leonel Brizola, resolveu garantir a posse de Jango, o melhor foi deixar que tudo transcorresse como reza o voto popular. João Goulart foi empossado, mas nunca conseguiu governar como queria devido a um parlamentarismo meia-boca que limitou seu campo de ação. Pena: ele tinha ótimas ideias progressistas que decerto contribuiriam para o avanço social do país.
Mal Jango tomou posse, a UDN e seus asseclas já vieram com as armas de sempre: suposta conspiração internacional para tomar o Brasil de assalto; alegações de corrupção desenfreada; tendências comunistas, inclusive nas forças armadas; revolução armada preparada pelo presidente e com o auxílio dos homens do campo, que chegariam às cidades armados até os dentes... Tudo invencionice da direita raivosa. Mas foi um prato cheio para que, em meio a uma crise econômica e a um ambiente de alta polarização política, os militares dessem um golpe. Um golpe que os udenistas queriam dar desde 1950, tentaram em 1955 e conseguiram em 1964. E que seus herdeiros resolveram repetir em 2016, sempre com as alegações de sempre: corrupção nunca dantes ocorrida e, como não podia deixar de ser, comunistas prestes a invadir o país, tomar a propriedade alheia, acabar com as famílias e toda sorte de disparates engendrados por uma elite que se arvora no poder desde a época do Brasil Colônia e não gosta de lideranças que ousam estender a mão aos menos favorecidos. Daí para apelar para o irracional e infundado medo dos comunistas é um pulo. Quem de fato estuda e conhece a História do Brasil sabe que nunca houve tentativa de implantar o comunismo no Brasil. Mesmo porque, o mesmo veio abaixo junto com a queda do Muro de Berlim, em 1989.
O que há nosso país, isso sim, é um sistema educacional deficiente que não forma cabeças pensantes; veículos de comunicação que, em sua maioria, não primam pela lisura e imparcialidade, mas por atender aos interesses das classes dominantes; políticos que atuam como aves de rapina para cima do erário; uma elite classista, inculta, sanguessuga e preconceituosa que não gosta dos pobres e tudo faz para suprimir seus direitos (algo que remonta desde os tempos da escravidão) e uma classe média (arquitetos, médicos, funcionários públicos, dentistas, empresários de médio porte etc.) que adora achar que pertence à elite. Por isso, esses profissionais liberais fazem questão de espezinhar quem eles empregam nas confecções, escritórios de advocacia, restaurantes, clínicas e similares. Só que, na hora de dividir o bolo, a elite, que se compraz em manipular a classe média, lhe dá as costas e volta à vida faustosa da qual adora usufruir. Aí, já é tarde: lá vai a classe média fechar as portas das lojas que abriu, abrir mão do plano de saúde, do financiamento do carro e da casa própria, da escola particular das crianças...
O verdadeiro Homem do Saco, Bico Doce ou Homem da Cordinha, portanto, não é o comunismo. É uma elite atrasada que manipula a opinião pública e tem políticos defendendo seus interesses com um único e específico objetivo: pilhar o país. Aliás, com o atual governo, vivenciamos o auge desse processo, com um bando de espertalhões utilizando o fantasma do comunismo para dar vazão a toda sorte de maldades.
Esqueçamos esse temor infundado de comunistas e invistamos em educação e informação de qualidade. Assim, teremos cada vez mais gente comprometida com nossas riquezas naturais, patrimônio cultural, soberania, ciência, saúde e muito mais que Bicho Papão algum ousará papar. Isso não tem a ver com comunismo, mas justiça social. E quando houver justiça social, todo mundo sairá lucrando, inclusive os mais favorecidos. Aí, não haverá baixa capacidade cognitiva que resista a tanto avanço!
P.S.: minha tia Alcidéa, que mora comigo, me disse que o Homem da Cordinha era, na verdade, um catador de papel que volta e meia passava na rua onde morávamos. Minha mãe armou tudo com ele. Ela falou para o Marcus que, se ele não andasse na linha, seria amarrado e levado embora pelo catador, que confirmou tudo. Coitado do meu irmão!
Marcelo Teixeira
BIBLIOGRAFIA:
1- ANDRADA, Alexandre – O golpe de 64 não salvou o país da ameaça comunista porque nunca houve ameaça alguma. The Intercept Brasil, 22/09/18. Disponível em: https://theintercept.com/2018/09/21/farsa-historia-ditadura-militar-comunista/
2- FARIZA, Ignácio – É preciso apagar a ideia de que reduzir desigualdade é coisa de comunista. El País, 05/08/19. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/02/economia/1564739067_996880.html
3- SOUZA, Jessé – A elite do atraso, Editora Estação Brasil, 2ª edição, 2019, Rio de Janeiro, RJ.
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