O impacto cultural da expansão evangélica sobre os povos originários
- Renata Freitas
- 4 de ago.
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A substituição de línguas, mitos e rituais tradicionais que colocam em risco nossa memória ancestral

O violento processo de colonização organizado pela Coroa Portuguesa em terras indígenas, a Pindorama, já carregava em seu fundamento a dominação e escravização dos povos originários, por motivos religiosos, políticos e econômicos. Nas terras em que hoje chamamos Brasil — nome escolhido pela árvore de seiva vermelha, em brasa, que poderia simbolizar também o sangue de nossos ancestrais — estima-se a existência de mais de 1.000 nações indígenas, cada uma com sua língua, organização social, cosmologia e território anteriores à colonização. Segundo Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro, "O Brasil pré-cabralino era um continente de povos e línguas... Uma babel viva de nações.”. Já em sua origem, identificamos o total apagamento das línguas indígenas para a instauração do processo mercantil e colonial, a terra foi nomeada não pela sua geografia ou cultura nativa, mas pelo produto que a Europa desejava extrair e comercializar. Isso indica como o interesse econômico foi central na construção da identidade do país desde o início.
Como diz o psiquiatra jamaicano Friedrick W. Hickling, no seu “Decolonization of psychiatry in Jamaica”:
“A psicose europeia tem criado imagens sociais, políticas e históricas distorcidas dos povos colonizados. Os colonizados não têm história, seus valores são incivilizados, e a história dele de luta contra o processo [de colonização] não tem sido registrado. É integral à psicose colonial europeia coletiva a tentativa de negar valores, cultura, e história social do colonizado”.
Para Aníbal Quijano, sociólogo e filósofo peruano, o colonialismo não terminou com a independência política dos países da América Latina, ele persistiu como lógica de poder, conhecimento e ser: “O colonialismo não é apenas uma ocupação territorial ou dominação econômica, mas a imposição de uma estrutura hierárquica de poder que naturaliza a inferiorização de povos, saberes e corpos.”(Quijano, 2000 — Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina). Ele define o colonialismo como o evento histórico e a colonialidade como a estrutura durável que perdura, mesmo após a saída dos colonizadores, consequência desse violento processo e que ainda opera nas relações sociais e epistêmicas. Ela atua por meio de classificação racial, dominação epistêmica e subordinação econômica.

A raça é uma construção social colonial, usada para justificar a exploração e inferiorização de povos colonizados. O colonialismo impôs a superioridade do pensamento europeu, apagando saberes indígenas, africanos e locais. Isso criou o que Quijano chama de “colonialidade do saber”, onde apenas a ciência ocidental é legitimada. Além disso, a divisão internacional do trabalho imposta pela colonização se manteve sob o capitalismo global. As ex-colônias permanecem nos postos subordinados da economia mundial, fornecendo matéria-prima e mão de obra barata. Afirma, ainda, que o colonialismo se transformou, mas não desapareceu. Hoje ele aparece em relações internacionais desiguais, epistemologias eurocêntricas, racismo estrutural e imposição de modelos culturais e políticos “universais”. Essa análise sobre a expansão dos movimentos evangélicos entre os povos indígenas nos remonta a novas práticas neocolonizadoras.
“A América Latina é, ao mesmo tempo, uma invenção do colonialismo europeu e a matriz originária da colonialidade do poder mundial.”(Quijano, 2000)
Após 500 anos, é fácil acreditar que, com a ausência dos colonos em terras brasileiras, somos um povo livre e em posse de sua total soberania. É urgente lembrar que isso é mais uma ilusão sintomática de nosso trauma coletivo. O apagamento de memórias proposto pelo epistemicídio dos povos originários é mais uma estratégia para debilitar nossas defesas e lutas. A perpetuação do etnocentrismo europeu, onde o fundamento da branquitude é reconhecer-se como única, central e verdadeira, relegando todos os Outros radicalmente diferentes à margem do poder, subordinados aos padrões culturais, sociais e econômicos superiores do velho continente.
O etnocídio, para Pierre Clastres — antropólogo francês conhecido por suas etnografias entre povos indígenas da América do Sul, especialmente os Guayaki — “é a supressão das diferenças culturais julgadas inferiores e más, pois enquanto o genocídio assassina os povos em seus corpos, o etnocídio os mata em seu espírito”. É praticado para o bem do selvagem, que precisa ser humanizado e resgatado do pecado e de suas práticas tradicionais que, traduzidas para a cultura dominante, são demoníacas. É o processo de aniquilação simbólica e institucional de um povo pela imposição de outra língua, proibição de rituais e costumes, evangelização forçada, educação assimiladora e colonização da memória e da narrativa histórica. Podemos observar, ainda hoje, esse processo em curso através da imposição do português sobre línguas indígenas, a criminalização de rituais e pajelança, a substituição das lideranças tradicionais por pastores ou agentes do Estado, a escolarização que desvaloriza saberes ancestrais e a apropriação cultural por saberes ocidentais hegemônicos.
“É possível destruir um povo sem matá-lo, desde que se apague sua língua, se ridicularize sua religião, se desorganize sua sociedade. Isso é o etnocídio.” (Pierre Clastres, em Arqueologia da Violência)

Entendendo com profundidade esse processo de violência física e simbólica, a discussão epistemológica se faz imprescindível. O perspectivismo é uma premissa epistemológica que defende a ideia de que há uma única realidade natural, social, cultural e religiosa. No entanto, tal como no relativismo, cada indivíduo ou grupo percebe e interpreta a realidade à sua maneira. Envolve duas principais categorias de interpretação do mundo, dos animais e do ser humano: as dualidades natureza-cultura e animalidade-humanidade, que definem a cosmologia de um certo povo.
No multinaturalismo, a produção de conhecimento dos povos originários defende uma diversidade dos corpos, mas uma unidade da cultura, do espírito. No entanto, é cosmocêntrico, onde a natureza e cultura fazem parte de um mesmo campo cosmológico. Há aqui uma unicidade do ser metamorfizado, o humano é um animal e o animal é um humano, em que o pensamento indígena humaniza o animal e animaliza o humano. Sendo o animismo-xamanismo o sistema simbólico-religioso predominante nessas sociedades, o xamã é o único sujeito que transita entre os dois mundos, o humano e o animal, sendo uma figura central na interpretação da cosmologia indígena. No multiculturalismo prevalece a ideia de separação entre natureza e cultura. As sociedades modernas defendem uma unicidade da natureza e a diferenciação e multiplicidade de culturas. No entanto, numa lógica etnocêntrica europeia, defende-se que a cultura do branco é o molde da civilização, enquanto a cultura indígena é a origem da barbárie.
Por essa conceituação, afere-se as noções de humanidade e animalidade. A ideia de humanidade, segundo o que chamamos perspectivismo indígena, não é a da noção de espécie humana, mas a da condição reflexiva de sujeito. No pensamento moderno ocidental, o estatuto de "humano" tem um duplo sentido, considerando, por um lado, que o homem é uma espécie animal entre outras, estando no domínio da animalidade; enquanto a humanidade é uma condição moral exclusivamente humana, excluindo os animais.
A partir dessas primeiras exposições conceituais, já é possível entender que a preservação da cultura "branca civilizada" como hegemônica, em detrimento da cultura "indígena selvagem", que observamos ao longo da História até os dias atuais, é apenas uma perspectiva possível, dentre tantas outras mais interessantes e mais justas, verdadeiramente humanas, do ponto de vista moral e dignificante. Os povos originários também possuem uma epistemologia que pensa e reflete sobre as suas ações, sobre a sua cultura e sistema simbólico-religioso. A sociedade indígena também possui conhecimento, cria modelos interpretativos, teorias e uma perspectiva da natureza em animais e plantas, do corpo e alma sujeitos da metamorfose animal-humano-animal, de si, da sua cultura, do outro e do mundo. Esse primeiro texto faz parte de uma série que se dedica a estudar o impacto cultural da expansão evangélica sobre os povos originários através da substituição de línguas, mitos e rituais tradicionais que colocam em risco nossa memória ancestral.
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