top of page

Ana Luiza: Quando o Afeto Vira Arma e a Adolescência Sangra em Silêncio

  • Foto do escritor: Ana Soáres
    Ana Soáres
  • 19 de jun.
  • 4 min de leitura

A morte de Ana Luiza, envenenada aos 17 anos por uma “amiga” disfarçada de admirador secreto, escancara um fenômeno tão perturbador quanto real: a romantização da crueldade entre meninas, a falência da empatia digital e a perigosa cultura do emocional intocável.

Ana Luiza: Quando o Afeto Vira Arma

Na tarde em que Ana Luiza morreu, o Brasil perdeu mais do que uma adolescente. Perdeu um espelho. Um reflexo de como temos criado nossas filhas para performar afeto e administrar veneno com a mesma delicadeza. Ela morreu acreditando que era amada. Mas foi traída pelo afeto disfarçado, pela inveja coreografada, pela encenação da doçura. O que era um bilhete carinhoso era, na verdade, uma sentença. E quem entregou o pote de bolo — não foi um homem, um estranho, um monstro. Foi outra menina. Uma igual.

O teatro do afeto: quando matar é encenar amor

Tudo foi calculado. O veneno comprado pela internet, a escolha do sabor, a caligrafia fingidamente delicada do bilhete. “Um mimo para a garota mais linda que eu já vi.” A frase gruda na garganta. Não porque é bonita, mas porque esconde um crime — e revela uma cultura.

Vivemos numa era em que tudo é encenação. Amor é prova social. Dor é engajamento. Vingança vem com filtro fofo e legenda enigmática. A menina que matou Ana Luiza criou um espetáculo. E o palco foi a expectativa emocional de outra garota.

“Quando soube, eu achei que fosse fake news. Quem é que mata outra menina com bolo? Que escreve bilhete doce pra entregar morte?”, questiona Débora*, colega de Ana.

A lógica do "emocional intocável"

No Brasil de 2025, parece que basta dizer “estava mal” para justificar o impensável. Não se trata de negligenciar a saúde mental — ela é urgente. Mas de perceber como sofrimento virou salvo-conduto para desumanizar o outro.

Quando o autor de um feminicídio é homem, há julgamento. Quando é uma mulher, há desculpa. A assassina de Ana tentou matar outra antes. Tentou envenenar de novo. Não foi surto. Foi insistência. Não foi impulso. Foi plano. Frio. Repetido. Mortal.

“A geração de agora acha que tudo se resolve com exposição ou cancelamento. Mas tem gente que tá cancelando com morte mesmo. E chamam isso de surto. Não é. É maldade mesmo, só que com emoji de lágrima”, afirma Renata Castro, psicóloga.

Meninas más não existem?

Na literatura, na TV, no cinema: a menina má quase sempre é fetichizada, estetizada, suavizada. Um exemplo? O sucesso da série “Pretty Little Liars” ou os milhares de perfis “sad girl aesthetic” no TikTok, que transformam sofrimento em moldura cool.

E é aí que mora o perigo: quando a crueldade vira estética, ela deixa de ser violência — e passa a ser estilo.

“A gente ensina as meninas a serem meigas. Mas ninguém ensina o que fazer com a raiva. Elas reprimem. Depois, explodem. Só que agora explodem com roteiro. Com trilha sonora. E com morte”, diz a pesquisadora feminista Andreza Cerqueira, da UFBA.

A morte de Ana Luiza como símbolo de um colapso silencioso

O Brasil, país com uma das maiores taxas de feminicídio do mundo, agora se vê diante de um espelho incômodo: o perigo também pode vir de quem deveria ser aliada.

Meninas envenenando meninas. Meninas sabotando meninas. Meninas imitando afetos que aprenderam em séries onde toda dor vira performance e toda decepção vira vingança.

Segundo o Mapa da Violência de Gênero 2023, 1 em cada 5 adolescentes brasileiras entre 13 e 19 anos relatou já ter sofrido bullying ou perseguição de outra menina por motivos emocionais.

Mais de 30% se sentem pressionadas a “serem perfeitas” nas redes. E 68% associam autoestima à aparência — dados do Unicef cruzados com a pesquisa TIC Kids Online.

A inversão da vítima

A narrativa judicial, infelizmente, não escapa desse adoçamento perverso. Já começaram os discursos sobre “instabilidade”, “sofrimento”, “imaturidade”. E a pergunta que não cala: se fosse um garoto, teria a mesma complacência?

Por que quando o autor é uma menina, a Justiça se curva à emoção, mas quando é menino, impõe a punição?

Ana morreu por confiar. Por não ter motivo nenhum para desconfiar. E agora, sua história corre o risco de ser engavetada como “tragédia juvenil”. Mas ela é muito mais do que isso. É uma denúncia viva de um modelo de socialização feminina que precisa ser desfeito.

Onde estão os limites?

Vivemos uma era em que ensinar limites é visto como opressão. Como se frustração fosse violência. Como se dizer “não” fosse abuso. O resultado? Uma geração maltratada que aprendeu a reproduzir o maltrato como linguagem emocional.

Não é a internet a culpada. Mas a internet amplifica. Multiplica. Embala. Ornamenta. Um bolo de pote com veneno e um bilhete romântico não nascem do nada. Eles são gestados num ecossistema que aplaude a dor como identidade e a crueldade como autenticidade.

Ana Luiza virou símbolo. E isso é grave.

Porque ela não deveria ter sido símbolo de nada. Deveria estar viva. Dançando em vídeos idiotas no Instagram, reclamando de provas, rindo de memes.Mas virou mártir. De um sistema que não protege. De uma cultura que normaliza o abuso entre pares. De um tempo onde a frase “não queria matar” parece ser suficiente para tentar absolver uma jovem assassina.

O que ainda precisa morrer para o Brasil despertar?

Quantas Anas ainda precisarão morrer até entendermos que a violência entre meninas existe — e mata?

Quantas mães terão que enterrar filhas enquanto assistem, estarrecidas, à romantização do trauma alheio como desculpa para tudo?

Não se trata de punir uma adolescente com sede de vingança. Trata-se de romper um ciclo. De encarar a crueldade onde ela está, sem floreio. Sem emoji. Sem bilhete carinhoso.

Porque justiça que falha com Ana, falha com todas nós.

“Escrevo para que as meninas vivas não sejam reduzidas ao silêncio das que morreram.” Ana Soáres


*Débora - nome fictício para preservar a identidade da menor.


Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
bottom of page