Não podemos punir os parlamentares
- Silver Marraz
- 12 de ago.
- 3 min de leitura
Eles se unem com o objetivo de nos fazer engolir a atrocidade natural do mau caráter

Nas últimas semanas, um movimento articulado no Congresso Nacional trouxe à tona um tema antigo, mas agora revestido de intenções escusas e hipócritas: o fim do foro privilegiado para parlamentares. Em qualquer democracia madura, discutir o alcance e os limites do foro especial é legítimo. No entanto, no atual contexto político brasileiro, essa proposta, apresentada por uma aliança heterogênea entre bolsonaristas, centristas e até setores da esquerda, está longe de ser um gesto republicano. Trata-se, ao contrário, de uma manobra ardilosa de autoproteção, arquitetada para sabotar o funcionamento da Justiça e proteger suspeitos da punição.
O pano de fundo dessa proposta é a inquietação crescente de cerca de 80 parlamentares investigados pela Polícia Federal por envolvimento em esquemas de desvio de verbas públicas, especialmente por meio de emendas parlamentares. A estratégia é simples e cínica: extinguir o foro especial no Supremo Tribunal Federal (STF) e, com isso, deslocar os inquéritos e processos para a Justiça de primeira instância. Aparentemente, um avanço. Na prática, um truque para empurrar os casos para o limbo da lentidão processual – onde o tempo, aliado ao poder político, pode fazer o serviço sujo de garantir impunidade.
Diferente do que muitos imaginam, o foro privilegiado não é, por si só, um instrumento de blindagem. O que o torna polêmico é seu mau uso – tanto por quem o invoca para fugir da Justiça, quanto por ministros que muitas vezes protelam decisões por conveniência política. No entanto, o STF, com todos os seus defeitos, ainda é um ambiente institucional mais impermeável às pressões locais, aos conchavos regionais e à intimidação de políticos poderosos sobre juízes de instâncias inferiores. Retirar esses casos do Supremo, agora, não é sinônimo de justiça célere, mas de justiça obstruída.
O que se apresenta como uma proposta de moralização é, na verdade, um golpe sofisticado contra a própria ideia de responsabilização política e penal. O momento escolhido para o avanço dessa pauta – logo após o vexatório motim bolsonarista na mesa da Câmara dos Deputados – não é coincidência, mas sim oportunismo político explícito. Com a ocupação encerrada e o país inteiro atento aos desdobramentos do 8 de janeiro de 2023, os líderes do levante conseguiram inserir na pauta do Legislativo, sob o pretexto de um suposto “acordo de pacificação”, dois projetos de interesses puramente corporativistas: a anistia aos golpistas e o fim do foro. A anistia, por ora, não avança — mas o foro, sim. E é aí que reside o maior risco democrático.
Não é de hoje que setores do Congresso tentam escapar de investigações e processos. O que torna este momento especialmente grave é a articulação transversal entre correntes políticas teoricamente antagônicas — bolsonaristas, centristas e figuras da esquerda. Quando tantos interesses se unem em torno de uma medida que, em tese, limitaria seus próprios privilégios, é hora de ligar o sinal de alerta. Há algo profundamente errado quando políticos se declaram dispostos a abrir mão de uma proteção constitucional — e o fazem em bloco, com pressa e discrição.
O fim do foro privilegiado deveria ser discutido como parte de uma reforma política ampla, estruturada e baseada em princípios claros de fortalecimento institucional. Não como um artifício para enterrar investigações que podem comprometer mandatos, carreiras e reputações. A pressa, neste caso, não é virtude – é evidência de culpa. É sintoma de medo. E é, sobretudo, uma afronta à inteligência do eleitor e ao Estado Democrático de Direito.
Se aprovada, essa mudança não representará uma vitória da moralidade pública, mas uma rendição ao cinismo institucional. Uma tentativa calculada de esvaziar o STF de seu papel investigativo e protetivo diante de crimes cometidos por detentores de mandato. A primeira instância não dará conta, em tempo hábil, da complexidade desses casos — e os acusados sabem disso.
É preciso denunciar, com todas as letras, a natureza oportunista dessa proposta. O Congresso Nacional, mais uma vez, usa a capa da moralização para servir aos seus próprios interesses. Enquanto a sociedade civil não se mobilizar para exigir reformas verdadeiramente republicanas – com critérios, com transição, com salvaguardas – continuará refém de um sistema que pune o pobre e protege o poderoso.
Sob a aparência de justiça, escondem-se os velhos vícios de uma elite política que, encurralada, escolhe a fuga ao invés da prestação de contas. O fim do foro privilegiado, tal como está sendo conduzido, não é um avanço. É um retrocesso disfarçado de virtude. E os que hoje aplaudem essa farsa serão os primeiros a lamentar quando a Justiça se tornar, mais uma vez, território exclusivo dos intocáveis.
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