[CRÍTICA] O BOM PROFESSOR (2025): quando o silêncio vira condenação
- Manu Cárvalho
- 21 de mar.
- 5 min de leitura
LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho

Existe um ponto na vida de todo professor em que a paixão pela educação se vê confrontada com a dura realidade das salas de aula. Em “O Bom Professor” (Pas de Vagues), o diretor Teddy Lussi-Modeste transforma essa tensão em uma obra incômoda, profundamente atual e, ao mesmo tempo, emocionalmente devastadora. Inspirado em uma experiência pessoal, o longa-metragem estreia como uma das produções francesas mais relevantes do ano — não por ser espetacular, mas por lançar luz sobre as rachaduras invisíveis do ambiente escolar contemporâneo.
Sinopse: quando ensinar vira perigo
Julien (interpretado com notável contenção por François Civil) é um jovem professor de literatura, recém-contratado em um colégio da periferia francesa. Idealista e dedicado, ele tenta, com entusiasmo, estabelecer pontes com seus alunos, acreditando que o conhecimento pode, de fato, ser libertador. Sua rotina, porém, vira de cabeça para baixo quando uma de suas alunas o acusa, falsamente, de assédio.
A partir daí, Julien se vê preso em uma espiral de desconfiança, omissão institucional e julgamento público. O que deveria ser investigado com cautela transforma-se em uma tempestade de suspeitas, onde a verdade parece ser o elemento menos importante. E Julien, um “bom professor” — como tantos que existem —, se torna, subitamente, o vilão de sua própria história.
A direção de Lussi-Modeste: firmeza e frieza como denúncia
Teddy Lussi-Modeste não dirige com fúria. Ele não grita. Seu estilo é calmo, quase clínico. E essa frieza, longe de enfraquecer a narrativa, amplifica seu impacto. O desconforto vem justamente do silêncio, da falta de explicações fáceis, do olhar de Julien que busca socorro e encontra omissão.
A câmera acompanha o protagonista como uma sombra. Muitos planos são fixos, como se estivéssemos em uma sala de aula, observando, impotentes, os acontecimentos. Há um controle técnico notável na forma como o diretor equilibra a tensão crescente com a burocracia fria do sistema. O colégio não é um inferno — mas é um espaço onde ninguém quer “fazer ondas”. Daí o título original, Pas de Vagues.
Essa escolha estética reforça o argumento político do filme: a ideia de que, muitas vezes, o sistema prefere sacrificar o indivíduo a lidar com o conflito.

François Civil: o anti-herói silencioso
Em um papel difícil, François Civil entrega uma das atuações mais contidas e eficazes de sua carreira. Julien não é carismático. Não é messiânico. Ele é um homem comum, com vocação, mas também com cansaço. E é exatamente por isso que seu colapso emocional comove tanto. Porque poderíamos ser ele. Porque conhecemos um Julien. Porque já ouvimos histórias como a dele.
A dor de Julien não vem apenas da acusação — mas da maneira como ela é tratada. O professor sofre calado, tentando preservar sua imagem e seus alunos, acreditando que a verdade virá à tona por mérito próprio. Mas a verdade, como o filme mostra, nem sempre tem valor quando o silêncio institucional é mais conveniente.
O olhar de Civil carrega cansaço, frustração, e um orgulho ferido que, aos poucos, se transforma em resignação. Sua atuação nunca escorrega para o melodrama. Ao contrário: quanto mais ele reprime, mais sentimos. E isso é cinema da melhor qualidade.
A crítica à educação francesa — e, por extensão, ao mundo
Ao retratar o sistema escolar francês, o filme atinge também outras realidades. O medo da denúncia. A insegurança dos professores. A precarização do ensino. O racismo estrutural. A hipocrisia do discurso progressista que, muitas vezes, apenas reproduz desigualdades disfarçadas de boas intenções.
A escola mostrada em “O Bom Professor” é real demais: diretores que temem a imprensa, coordenadores que evitam conflitos, colegas que se afastam, alunos que aprenderam cedo a manipular o jogo do poder. Todos agem por sobrevivência — não por convicção.
E Julien se torna, assim, um corpo expiatório. Um homem jogado aos lobos para que a instituição siga ilesa.
O roteiro de Audrey Diwan: silêncio como denúncia
O roteiro, escrito por Audrey Diwan em colaboração com o diretor, é enxuto, pontual e brilhantemente cruel. A história avança sem pressa, mas cada cena contribui para a sensação de que algo está prestes a ruir. E o que desmorona, no fim, não é apenas a vida de Julien — é a ideia de justiça, é o pacto de confiança entre professor e instituição.
Há diálogos marcantes, mas o que mais se destaca são os silêncios. As reuniões frias. Os telefonemas evitados. As frases interrompidas. É um roteiro que respeita a inteligência do espectador e evita maniqueísmos.
É preciso coragem para escrever um filme sobre um falso testemunho e, ainda assim, manter a crítica centrada no sistema, e não na aluna acusadora. “O Bom Professor” não tenta demonizar adolescentes. Ele denuncia os adultos que preferem ignorar a verdade a bancar o custo da transparência.

Desconforto ético: e se a vítima for quem ensina?
Talvez o maior mérito de Pas de Vagues seja provocar uma reflexão ética incômoda: o que acontece quando a vítima está do lado de quem tem poder formal, mas nenhum apoio real? E mais: quando as denúncias se tornam ferramentas para outras disputas, o que resta do princípio da escuta e da reparação?
O filme não propõe respostas. Ele apenas mostra a corrosão de uma vida em tempo real. E isso dói.
Estética: onde a simplicidade vira contundência
A cinematografia aposta em planos sóbrios, inspirados pelo realismo social europeu. O design de som é igualmente contido — sem grandes trilhas ou inserções dramáticas. Isso é um acerto. Porque o que vemos e ouvimos é exatamente o que Julien vive: silêncio, portas fechadas, vozes abafadas.
A fotografia destaca ambientes frios, salas de aula vazias e corredores estéreis. A escola é mostrada como um campo neutro onde a violência simbólica acontece com luvas de veludo. O “cenário” é cúmplice do enredo.
Uma acusação reversa ao cinema moralista
Em tempos de polarização e discursos inflamados, “O Bom Professor” opta por caminhar na linha tênue da ambiguidade. Não é um filme sobre inocência, e sim sobre a rapidez com que condenamos sem investigar. Sobre como o medo da imprensa, das redes sociais e da repercussão molda comportamentos, muitas vezes em detrimento da justiça.
É também uma crítica sutil ao próprio cinema, que costuma retratar professores como heróis ou vilões. Aqui, eles são humanos. E isso é mais raro do que parece.

Recepção crítica: divisões e reverberações
O filme foi ovacionado em sua estreia no Festival de Cannes, especialmente pela crítica europeia, que reconheceu em Lussi-Modeste uma voz lúcida e necessária. Mas como toda obra que lida com questões sensíveis, também gerou debate. Houve quem considerasse perigoso abordar falsas acusações em um tempo de tantas denúncias reais.
Esse é um ponto válido. Mas o filme se posiciona com clareza: seu foco está na fragilidade institucional, não na invalidação de vítimas reais. O incômodo que causa é legítimo — e, talvez, justamente por isso, urgente.
O BOM PROFESSOR: Um filme necessário, mesmo quando desconfortável
“O Bom Professor” é um daqueles filmes que você assiste e, ao terminar, não sabe exatamente o que sente. Raiva? Tristeza? Frustração? Alívio? Injustiça? Todos ao mesmo tempo. E essa confusão emocional é parte da sua força. Ele não entrega catarse. Ele entrega realidade. Uma realidade que muitos professores conhecem bem, mas raramente têm espaço para contar.
É, sim, um filme importante. Mas não é um filme fácil. E talvez essa seja sua maior virtude.
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