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[CRÍTICA] Sorry, Baby transforma o silĂȘncio em narrativa e confirma Eva Victor como uma das vozes mais sensĂ­veis e incĂŽmodas do cinema contemporĂąneo

  • Foto do escritor: ManĂș CĂĄrvalho
    ManĂș CĂĄrvalho
  • 9 de dez.
  • 5 min de leitura

LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por ManĂș CĂĄrvalho



filme sorry, baby
Foto: divulgação/Mares Filmes/Alpha Filmes

HĂĄ filmes que nĂŁo pedem atenção. Eles exigem escuta. Sorry, Baby, estreia de Eva Victor na direção de longas-metragens, pertence a essa categoria rara de obras que nĂŁo se impĂ”em pelo volume, pela urgĂȘncia ou pelo choque explĂ­cito, mas pela maneira como se insinuam, ocupando espaços de silĂȘncio, pausas desconfortĂĄveis e emoçÔes mal resolvidas. SerĂĄ lançado nos cinemas em 11 de dezembro de 2025, com duração de 1 hora e 44 minutos, o filme chega como um contraponto direto ao excesso narrativo que domina grande parte do cinema contemporĂąneo. Aqui, menos nĂŁo Ă© apenas mais. É essencial.


Desde os primeiros minutos, fica claro que Eva Victor nĂŁo estĂĄ interessada em conduzir o espectador pela mĂŁo. O filme se apresenta de forma quase despretensiosa, com cenas aparentemente banais, diĂĄlogos fragmentados e uma cĂąmera que observa mais do que interfere. Mas essa aparente simplicidade esconde uma construção emocional sofisticada, que exige do pĂșblico algo raro hoje em dia: paciĂȘncia e disponibilidade afetiva.


A histĂłria acompanha uma jovem mulher em um momento de transição emocional profunda, lidando com traumas que nĂŁo sĂŁo nomeados de imediato. Eva Victor, que tambĂ©m assina o roteiro e protagoniza o filme, constrĂłi uma personagem marcada pela dificuldade de expressar dor. NĂŁo hĂĄ grandes monĂłlogos explicativos, nem cenas de catarse clĂĄssica. O sofrimento existe, mas se manifesta de forma difusa, em gestos interrompidos, frases que nĂŁo se completam, olhares que desviam. É um retrato honesto de como o trauma muitas vezes se apresenta na vida real: confuso, silencioso e socialmente invisĂ­vel.


Essa escolha narrativa Ă©, ao mesmo tempo, o maior trunfo e o maior risco do filme. Sorry, Baby aposta em uma linguagem extremamente contida, o que pode afastar parte do pĂșblico acostumado a conflitos mais evidentes e resoluçÔes claras. Eva Victor parece plenamente consciente disso e, ainda assim, mantĂ©m sua proposta com rigor. O filme nĂŁo acelera para agradar, nĂŁo explica para facilitar e nĂŁo dramatiza para comover artificialmente. Ele confia na inteligĂȘncia emocional do espectador.


Como atriz, Eva Victor entrega uma performance de notåvel precisão. Sua personagem raramente verbaliza o que sente, mas tudo estå ali, nos microgestos, na postura corporal, na forma como ocupa ou evita espaços. Hå uma vulnerabilidade constante que nunca se transforma em autopiedade. Victor constrói uma protagonista que não pede empatia, mas a conquista justamente por sua recusa em performar a dor de maneira convencional.


Ao seu redor, o elenco funciona como extensÔes emocionais dessa trajetória fragmentada. Naomi Ackie surge como uma presença fundamental, oferecendo um contraponto de calor humano e escuta genuína. Sua personagem não é construída como salvadora nem como figura idealizada. Ela também carrega suas próprias hesitaçÔes, o que torna a relação entre as duas ainda mais real. Ackie trabalha com uma naturalidade impressionante, criando momentos de intimidade que parecem capturados, não encenados.


Lucas Hedges, por sua vez, traz uma performance marcada pela ambiguidade emocional. Seu personagem transita entre apoio e distùncia, carinho e incapacidade de compreender plenamente o que se passa. Hedges domina esse tipo de registro com segurança, mas aqui sua atuação é deliberadamente contida, quase retraída. O filme não lhe concede grandes momentos de destaque, o que pode soar frustrante, mas essa escolha parece intencional. Ele não estå ali para resolver conflitos, mas para evidenciar a dificuldade de conexão.


Narrativamente, Sorry, Baby se estrutura de maneira fragmentada, com elipses temporais e cenas que parecem desconectadas Ă  primeira vista. Eva Victor utiliza essa fragmentação como espelho do estado emocional da protagonista. O tempo nĂŁo Ă© linear porque a experiĂȘncia do trauma tambĂ©m nĂŁo Ă©. O passado invade o presente sem aviso, e o futuro parece sempre suspenso. Essa abordagem confere ao filme uma qualidade quase sensorial, em que a compreensĂŁo vem mais pelo acĂșmulo de sensaçÔes do que pela progressĂŁo tradicional da trama.


Essa escolha estĂ©tica e narrativa tem sido amplamente reconhecida como um dos grandes mĂ©ritos do filme. HĂĄ uma coerĂȘncia rara entre forma e conteĂșdo. A maneira como a histĂłria Ă© contada reflete exatamente o que estĂĄ sendo contado. No entanto, essa mesma opção tambĂ©m evidencia algumas fragilidades. Nem todos os arcos dramĂĄticos recebem o mesmo grau de aprofundamento. Certas relaçÔes sĂŁo apresentadas com potencial emocional significativo, mas acabam se diluindo antes de atingir pleno impacto.


Em alguns momentos, a sensação Ă© de que o filme se aproxima de um conflito importante e, deliberadamente, recua. Essa recusa em explorar determinadas camadas pode ser lida como respeito ao silĂȘncio da personagem, mas tambĂ©m gera pontas narrativas que permanecem em aberto de maneira excessiva. NĂŁo se trata de ambiguidade poĂ©tica, mas de uma contenção que, por vezes, limita o alcance emocional de certas situaçÔes.


Essa característica fica especialmente evidente em alguns personagens secundårios, que surgem como figuras promissoras, mas não ganham tempo suficiente para se desenvolver plenamente. O resultado é um filme extremamente consistente em sua linha central, mas que, em alguns momentos, parece hesitar em expandir seu universo emocional além da protagonista. A escolha é coerente com a proposta autoral, mas cobra um preço em termos de densidade narrativa global.


Ainda assim, o que Sorry, Baby perde em amplitude, ganha em intimidade. Eva Victor demonstra um domĂ­nio notĂĄvel da linguagem cinematogrĂĄfica, especialmente na direção de atores. As cenas mais marcantes do filme nĂŁo sĂŁo aquelas em que algo explicitamente acontece, mas aquelas em que quase nada ocorre. Um silĂȘncio prolongado, uma conversa interrompida, um gesto de cuidado que nĂŁo encontra resposta. SĂŁo nesses espaços que o filme se instala.


Visualmente, a direção aposta em uma estética discreta, com enquadramentos que favorecem a proximidade emocional. A cùmera raramente se afasta. Ela observa rostos, mãos, corpos em estado de espera. A fotografia evita contrastes exagerados e cores chamativas, reforçando a sensação de um mundo emocionalmente amortecido. Nada ali grita. Tudo sussurra.


A trilha sonora segue a mesma lĂłgica. Utilizada com parcimĂŽnia, ela surge apenas quando necessĂĄria, sem sublinhar emoçÔes de forma Ăłbvia. O silĂȘncio, novamente, Ă© tratado como elemento narrativo. Eva Victor entende que, em um filme como esse, a mĂșsica nĂŁo deve conduzir sentimentos, mas respeitar o espaço interno dos personagens.


Um dos aspectos mais interessantes de Sorry, Baby é sua abordagem da dor feminina sem recorrer a clichĂȘs. O filme nĂŁo transforma o sofrimento em espetĂĄculo, nem oferece trajetĂłrias fĂĄceis de superação. A cura, aqui, nĂŁo Ă© um objetivo claro, mas um processo incerto. Eva Victor se recusa a oferecer respostas prontas ou finais reconfortantes. O que existe Ă© a possibilidade de seguir, mesmo sem entender completamente o que ficou para trĂĄs.


Essa honestidade emocional Ă©, sem dĂșvida, o maior trunfo do filme. Em um cenĂĄrio cinematogrĂĄfico frequentemente dominado por narrativas ruidosas e emocionalmente manipuladoras, Sorry, Baby aposta na contenção como forma de respeito ao espectador. É um filme que confia que o pĂșblico saberĂĄ preencher os vazios com suas prĂłprias experiĂȘncias.


Ao mesmo tempo, Ă© impossĂ­vel ignorar que essa mesma contenção pode gerar distanciamento. HĂĄ momentos em que o filme parece tĂŁo comprometido com o silĂȘncio que evita confrontos emocionais mais diretos, o que pode deixar a sensação de que certas dores foram apenas tangenciadas. Para alguns espectadores, isso serĂĄ uma virtude. Para outros, uma limitação.


No balanço final, Sorry, Baby se impÔe como uma estreia autoral forte, sensível e profundamente coerente. Eva Victor demonstra uma clareza impressionante sobre o tipo de cinema que deseja fazer e sobre as histórias que quer contar. Mesmo quando tropeça em excessos de contenção ou deixa arcos em suspensão, o filme nunca perde sua honestidade.


NĂŁo Ă© um drama pensado para grandes plateias nem para consumo rĂĄpido. É um filme que pede tempo, escuta e disposição emocional. E, para quem aceita esse convite, oferece uma experiĂȘncia rara: a sensação de ter assistido a algo genuinamente humano.


Nota final: ⭐⭐⭐⭐✹ (4,5/5)


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