Denúncia, Justiça e Memória: O Caso Juliana Oliveira
- Ana Soáres
- 28 de mar.
- 5 min de leitura
OPINIÃO
O Debate Sobre Violência e Consentimento na TV

Você já parou para pensar no peso do tempo quando se trata de denunciar um abuso? A sociedade frequentemente questiona por que uma vítima demora anos para falar, mas esquece que o silêncio, muitas vezes, não é uma escolha – é uma imposição. E foi esse silêncio que Juliana Oliveira rompeu ao denunciar Otávio Mesquita por estupro, oito anos depois do ocorrido em pleno palco do SBT.
A ex-assistente de palco do The Noite trouxe à luz do conhecimento público um episódio que passou despercebido por muitos na época, mas que, sob o olhar atento de hoje, ganha uma nova interpretação. As imagens falam por si. No vídeo disponível no YouTube, Juliana é tocada sem consentimento por Mesquita, que chega ao palco pendurado por cabos, simula movimentos sexuais e faz comentários constrangedores.
A defesa da humorista não hesita: a jurisprudência atual classifica esse tipo de ação como estupro, mesmo sem penetração. E mais: a ausência de uma denúncia imediata não invalida a gravidade dos fatos. O próprio advogado de Juliana, Hédio Silva, foi enfático:
"Ela saiu com a noção exata de que foi violentada, mas não entendia a gravidade... Quando me contratou, analisei o material e disse: 'Isso foi estupro com tudo gravado'".
O Tempo da Justiça vs. O Tempo da Vítima
O argumento de Mesquita, de que tudo não passou de uma brincadeira combinada e de que a gravação foi ao ar sem objeções na época, reflete um pensamento que, felizmente, vem sendo desmontado. O fato de algo ter sido aceito ou ignorado no passado não significa que era correto. O mundo evolui e, com ele, a percepção sobre consentimento, assédio e violência de gênero.
É impossível ignorar o impacto do componente racial nesta história. Juliana, mulher negra, enfrentou um duplo obstáculo: o de ser uma mulher na indústria do entretenimento e o de ter seu corpo visto como público, um reflexo do racismo estrutural que ainda persiste no Brasil. A luta dela não é apenas por justiça pessoal, mas por todas as mulheres que um dia foram tratadas como objeto de piada em ambientes onde o poder não estava ao seu lado.
O SBT e a Cultura do Silêncio
Outro ponto que chama atenção é a postura do SBT. Segundo a defesa de Juliana, a humorista levou a denúncia à emissora no final de 2024, mas não recebeu a resposta que esperava. A TV, como uma das maiores plataformas de formação de opinião, tem a responsabilidade de rever seus conteúdos e reconhecer que, em nome da audiência, por vezes normalizou condutas abusivas.
E essa não é a primeira vez que o nome da emissora surge em casos do tipo. Durante anos, programas de auditório exploraram corpos femininos para entretenimento, criando uma cultura onde a invasão do espaço da mulher era vista como humor ou espontaneidade. O caso de Juliana é um reflexo disso e um convite para que o público também questione: quantas vezes rimos do que, na verdade, era violência?
Racismo, Misoginia e Abuso de Poder nos Bastidores da TV Brasileira
Juliana Oliveira, uma mulher negra, talentosa e carismática, foi assistente de palco do The Noite durante anos. Com seu humor e presença marcante, conquistou o público, mas nos bastidores, sua realidade era outra: uma rotina de assédio velado, constrangimento e humilhação. O recente processo criminal contra Otávio Mesquita, acusado de estupro durante uma gravação de 2016, expõe não apenas a conduta do apresentador, mas um sistema inteiro que naturaliza o abuso, a misoginia e o racismo nos corredores da televisão brasileira.
E onde estava Danilo Gentili? O mesmo homem que construiu sua persona pública baseada no escárnio contra minorias, na “piada” racista, misógina e na humilhação disfarçada de humor? O mesmo que, diante da exposição de Juliana, preferiu o silêncio conveniente de quem sempre soube, sempre viu, mas nunca se importou. Durante anos, a presença dela no programa foi reduzida a um papel subalterno, em que sua cor e seu gênero eram explorados como piada.
Ser mulher negra na TV: servindo ao riso branco
O caso de Juliana não é isolado. Mulheres negras na televisão brasileira raramente ocupam espaços de protagonismo. Quando conseguem visibilidade, são tratadas como adereços, objetos de entretenimento para uma audiência majoritariamente branca e masculina. São hiperssexualizadas, infantilizadas ou desumanizadas.
Juliana passou anos sendo alvo de insinuações, toques indevidos e comentários de cunho sexual enquanto trabalhava. O próprio Gentili, em diversas ocasiões, se referiu a ela de maneira desrespeitosa e reducionista. E, como esperado, a emissora silenciou. O SBT, historicamente conhecido por programas que exploram corpos femininos para atrair audiência, sequer ofereceu suporte à sua funcionária diante do trauma.
O racismo que permite, a misoginia que protege
Se Juliana fosse uma mulher branca, a história teria sido diferente. O Brasil tem um histórico de minimizar a dor das mulheres negras, tratando-as como fortes o suficiente para aguentar qualquer coisa, mas nunca vulneráveis o bastante para serem protegidas. Essa estrutura se reflete no Judiciário, na mídia e no debate público.
Enquanto Mesquita se defende com a narrativa da “brincadeira combinada”, Juliana luta contra um sistema que sempre descredibilizou mulheres negras. A palavra dela precisa atravessar um mar de dúvidas, enquanto a dele é automaticamente aceita. Essa é a regra do jogo: o homem branco de 65 anos, com décadas de televisão, é visto como respeitável; a mulher negra, que ousa denunciar, como exagerada.
A TV brasileira precisa mudar – e rápido
O caso de Juliana Oliveira é mais do que uma denúncia criminal contra Otávio Mesquita. É a prova concreta de que a televisão brasileira ainda se sustenta em estruturas arcaicas, onde homens brancos em posição de poder se protegem enquanto mulheres negras são descartáveis. A postura de Danilo Gentili ao longo dos anos reforça essa dinâmica de abuso e impunidade.
Mas a impunidade precisa acabar. Juliana fez o que tantas mulheres negras são impedidas de fazer: falou. Denunciou. E agora, cabe à sociedade escolher de que lado vai ficar. Do lado dos que riem da opressão ou dos que querem desmantelá-la de vez?
O Futuro da Denúncia de Juliana Oliveira
Com a representação criminal já aberta no Ministério Público de São Paulo, resta saber como a Justiça tratará o caso. Em tempos onde a reavaliação histórica de comportamentos é uma constante, o desfecho dessa história pode se tornar um marco.
Otávio Mesquita, por sua vez, se defende, alegando que tudo foi "uma brincadeira" e que o caso está sendo analisado fora de contexto. Mas é exatamente isso que se discute hoje: o que, de fato, deve ser chamado de brincadeira?
O que antes era "aceitável" hoje é lido sob uma nova ótica – e isso é progresso, não perseguição. Juliana Oliveira fez o que muitas ainda não conseguem: expôs uma ferida aberta na sociedade e nos fez refletir sobre as estruturas que ainda precisam ser derrubadas.
A pergunta que fica é: de que lado da história queremos estar?
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