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Entre couro e orgulho: Bold Strap, a moda queer-fetichista e a revolução do corpo

  • Foto do escritor: Renata Freitas
    Renata Freitas
  • 10 de out.
  • 7 min de leitura

Do que está proibido à passarela: a moda como grito de revolta e afirmação queer


Campanha PRIDE COLLECTION 2025
Campanha PRIDE COLLECTION 2025 (reprodução/instagram @boldstrap)

O desfile da Bold Strap na São Paulo Fashion Week N58, de outubro de 2024, não foi apenas uma apresentação de moda, foi um manifesto sobre liberdade, desejo e identidade. Sob o tema queer fetichista, a marca reafirmou a vocação de unir o erotismo à política, revisitando a estética do fetiche como ferramenta de expressão e resistência. Fundada em 2018 por Peu Andrade, nasceu da interseção entre a lingerie fetichista e o vestuário urbano, fundindo a esfera do desejo ao cotidiano mais ordinário. A marca carrega a herança do underground londrino e do fetichismo de clubes noturnos e subculturas, aliando ao sotaque brasileiro e olhar político, um fenômeno que leva o subversivo à luz do dia. Ao trazer itens historicamente confinados a nichos de fetiche e BDSM (práticas de bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo) para coleções de streetwear e alta moda, Peu Andrade efetua um poderoso ato de "desmarginalização" do desejo. Lançou, ainda, em junho de 2025, a "Pride Collection", em comemoração ao Mês do Orgulho LGBTQIAPN+, dando continuidade ao desenvolvimento de sua estética queer. Teve a assinatura de beleza desenvolvida por Bianca Andrade, a Boca Rosa. O vídeo da campanha usou estética cybershot e handycam, filmando pessoas reais da comunidade LGBTIAPN+ em situações cotidianas em São Paulo, reforçando um clima espontâneo e autêntico.


Campanha PRIDE COLLECTION 2025 (reprodução/instagram @boldstrap)

Em vez de esconder o fetiche, a Bold Strap o transforma em ferramenta de empoderamento. A estética da marca é sexy e empoderada, onde couro, látex, transparências e as famosas tiras dos harnesses deixam de ser sinais de desvio para se tornarem símbolos de confiança e autodomínio. A marca se expandiu para ser inclusiva e sem gênero, vestindo homens, mulheres e pessoas não-binárias com a mesma ousadia. Figuras como Camila Queiroz e Pabllo Vittar vestem Bold Strap, demonstrando que o apelo da marca transcende o nicho, validando o desejo e a sexualidade como expressões saudáveis e públicas.


O lançamento da última coleção reafirmou essa identidade: baby tees, harnesses, shorts curtos e moletons surgiram reinterpretados entre o pop urbano das estampas esportivas e o brilho da celebração. As peças evocavam tanto a rua quanto a pista de dança, espaços históricos de liberdade queer. Inspirada no movimento de Stonewall (1969) e nas cores da bandeira LGBTQIAPN+, a coleção dialogou com cinco décadas de luta e celebração queer, traduzindo-as em couro, látex, recortes, transparências e humor. A paleta de cores traz tons vibrantes do arco-íris e, também, tons nudes e pastéis que contrastam com materiais mais duros, como látex e couro, criando um jogo entre leveza e estrutura. Mais do que sensualidade, havia aqui uma estética da resistência: os símbolos do fetiche transformam-se em ornamentos de poder. O número “69”, estampado em algumas peças, condensa ironia e história: o ano de Stonewall e o gesto de prazer ressignificados como liberdade.

Campanha PRIDE COLLECTION 2025 (reprodução/instagram @boldstrap)

Em 28 de junho de 1969, em Nova York, a moda deixou de ser apenas um adorno e se tornou, definitivamente, um instrumento de combate. Foi o ponto de ignição de uma revolução cultural que redefiniu o modo como corpos dissidentes se reconhecem. Naquela noite, a polícia invadiu o Stonewall Inn, um bar frequentado por gays, lésbicas e, crucialmente, travestis e drag queens. A repressão era brutal, e um dos motivos frequentes para prisões era o uso de "mais de três peças de roupa do sexo oposto".


A rebelião que se seguiu, liderada por figuras como Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera, foi uma explosão de corpos que se recusaram a ser escondidos ou ditados. A vestimenta, que era motivo de perseguição, transformou-se em símbolo de resistência pública. Esse momento é a gênese de uma contracultura que, desde então, usa a estética para desmantelar a cis-heteronormatividade imposta.


Nas décadas seguintes, o vestuário tornou-se uma linguagem central dessa luta. Nos anos 1970, o glam rock de David Bowie e o disco das comunidades negras e latinas queer transformaram a androginia e o brilho em armas de subversão. Nos 1980, o movimento leather e o ativismo de portadores do HIV/AIDS uniram dor e resistência, enquanto a ball culture e o voguing redefiniram o corpo como performance radical de sobrevivência.


A moda, nesse percurso, deixou de ser mero reflexo de tendências para se tornar um território de insurgência estética. A moda queer moderna, que floresce no cenário contemporâneo, é herdeira direta desse espírito. Ela carrega a missão de romper o modelo binário de vestuário – o "azul para menino, rosa para menina" – e de criar um espaço onde a identidade é fluida e celebrada. No Brasil, poucas marcas encapsulam essa fusão de ativismo, estética e quebra de tabus como a Bold Strap.


Campanha PRIDE COLLECTION 2025 (reprodução/instagram @boldstrap)


A moda como tecnologia de identidade queer


A conexão entre o movimento queer e a Bold Strap reside na compreensão da moda como uma tecnologia de identidade. Para além da estética chocante, teorias e princípios são observados, como adotar a aparência como ferramenta de passabilidade, em que o vestuário queer tem sido vital para exercer a capacidade de ser socialmente reconhecido como o gênero ou identidade que se afirma e para a segurança em espaços públicos. A roupa ajuda a confundir e a negociar a aceitação. Já a moda binária, praticada pela indústria a partir de ideais culturais com seu modelo dimórfico, tenta impor que corpos e roupas afirmam o discurso de que ambos são de mundos completamente distintos.


A moda queer, e a Bold Strap em particular, rejeita essa lógica binária. Ao colocar harnesses em diferentes corpos ou transformar o jockstrap masculino em peça-chave de uma coleção de passarela, a marca está, ativamente, desconstruindo as fronteiras de gênero. Ela celebra a ambiguidade e a fluidez que a teoria queer advoga. Se em Stonewall o ato de vestir uma roupa "errada" para o seu sexo era um ato de rebeldia que levava à prisão, hoje, colocar essa mesma estética no São Paulo Fashion Week (SPFW) é um ato de ocupação cultural e política.

Coleção desfilada no SPFW N58 (reprodução/instagram @boldstrap)

O último desfile da grife, em 2024, teve ares de festa urbana e libertária. As luzes, inspiradas em clubes noturnos, e a trilha sonora pulsante criaram um ambiente de celebração. A maquiagem e o styling, com brilhos e acessórios de fantasia, reforçavam o diálogo entre realidade e sonho, sexo e espetáculo. Como nas grandes manifestações culturais queer, das paradas do orgulho às ballrooms, a passarela da Bold Strap funcionou como um espaço de pertencimento e visibilidade. Cada look é um grito coletivo: “Nossos corpos estão aqui, e merecem ser vistos”.


Em sua origem, o fetichismo nos movimentos queer sempre foi uma estratégia de subversão da norma. Ao vestir-se com aquilo que a sociedade define como perverso, o sujeito queer expõe a própria arbitrariedade do moralismo. A roupa, ou sua ausência, torna-se uma crítica viva à heteronormatividade. O prazer, então, é político. Longe da futilidade da hipersexualização de corpos, aqui o vestuário e seus simbolismos figuram como ferramenta de diálogo, propondo a discussão urgente sobre a violência que esses corpos dissidentes enfrentam diariamente.


Desfile da Bold Strap na SPFW N58 (reprodução/instagram @boldstrap)


Quando a moda queer que surge das ruas é levada à academia


Judith Butler, em sua teoria queer, traz a discussão sobre esse movimento contracultural a níveis acadêmico por meio da crítica à identidade fixa e ao binarismo. Isso reforça a ideia de que gênero e sexualidade são performances e construções sociais que se manifestam esteticamente na desconstrução da moda binária. O corpo é performance, e a roupa, extensão desse gesto contínuo de afirmação. Utilizando-se do conceito de fetichismo não apenas no sentido sexual, mas como um mecanismo de análise que desloca e ressignifica a sexualidade, o gênero e a identidade, expondo a artificialidade e a construção da própria normatividade. O fetiche, como um foco intenso em uma parte ou material, questiona o que é considerado completo ou normal.


O uso de roupas tradicionalmente associadas ao gênero oposto tem sido um dos atos contraculturais mais visíveis e poderosos. A mistura deliberada de elementos masculinos e femininos, popularizada por ícones como David Bowie e Prince, assim como os movimentos feministas que queimaram o sutiã e subverteram o uso do terno, questionou as definições rígidas de masculinidade e feminilidade a partir da androginia. Já a arte drag, central na Ball Culture leva a performance de gênero ao extremo, usando a moda para comentar e satirizar as normas, ao mesmo tempo que constrói um senso de identidade e poder para as performers.


Em épocas de forte repressão, a moda funcionava como uma linguagem secreta para a comunidade queer. Detalhes específicos no vestuário, como o uso de lenços em cores e bolsos específicos (o hanky code), eram usados para sinalizar orientação sexual, fetiches e disponibilidade de forma discreta, mas reconhecível. Com o desenvolvimento desses movimentos, a moda passou a incluir slogans ativistas, o uso da bandeira do arco-íris – popularizada por Gilbert Baker em 1978 – e de cores vibrantes como uma afirmação pública de orgulho e visibilidade.

Desfile da Bold Strap na SPFW N58 (reprodução/instagram @boldstrap)

Os movimentos contraculturais também criticavam a moda como um reflexo do consumo capitalista e do conformismo. Em contraste com as grifes, muitas subculturas – como o movimento punk, que se cruzava com a comunidade queer – adotaram uma estética DIY (Faça você mesmo), com roupas rasgadas, customizadas e reutilizadas, rejeitando o vestuário produzido em massa e afirmando uma estética pessoal e rebelde.


A partir dos anos 2000 até os dias atuais, a discussão queer ganha mais visibilidade e espaço no mainstream. Com o crescimento do ativismo digital, a moda responde com peças agênero, sem distinção entre masculina e feminina, e a popularização do gênero fluido – como em artistas como Harry Styles e Lil Nas X –, desafiando as divisões de vestuário em lojas e passarelas. É o legado direto da crítica queer ao binarismo imposto, propondo que a roupa é apenas tecido e que o indivíduo é quem define seu estilo, não o contrário. A moda não é apenas um adereço, mas uma extensão da identidade queer. Ela é a tela onde a luta contra a opressão de gênero e sexualidade se manifesta, indo além da simples vestimenta para se tornar um ato contínuo de resistência, celebração e visibilidade.


Renata Freitas



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