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Ginga que resiste: a capoeira como ato de liberdade, saúde e identidade no Brasil que (ainda) tenta se encontrar

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    Da redação
  • há 6 dias
  • 4 min de leitura

No Brasil o corpo negro sempre foi visto como ameaça, a capoeira segue dançando entre o ataque e a arte, lutando para não ser esquecida


Roda de capoeira
Roda de capoeira - Divulgação

No batuque do atabaque, no compasso da palma ritmada e no assobio doce do berimbau, pulsa uma história que não cabe nos livros didáticos nem nos silêncios da escola. Pulsa uma herança que foi açoitada, mas nunca dobrada. Uma dança que é também golpe, uma brincadeira que é grito, uma roda que é resistência.

Capoeira.

Não há palavra mais brasileira e, ao mesmo tempo, tão marginalizada como esta.

No último 03 de agosto, comemorou-se o Dia do Capoeirista — data que passa despercebida no noticiário tradicional, mas que carrega séculos de dor, resiliência e celebração. Em pleno 2025, ainda somos um país que pouco compreende o poder libertador que existe nesse movimento que gira, escapa, ataca e abraça ao mesmo tempo.

“A capoeira é mais do que um esporte. É sobrevivência. É memória em movimento”, diz Luiz Fernando Lukas, profissional de Educação Física e contramestre de capoeira, conhecido no universo da luta como Contramestre Espião.

De escravidão à resistência: o nascimento de uma ginga proibida

Criada por africanos escravizados no Brasil durante os séculos XVIII e XIX, a capoeira nasceu da dor, mas se vestiu de beleza para não ser morta. Como lutar era proibido — afinal, um povo que se defende não se submete com facilidade —, os corpos negros precisaram disfarçar a arte marcial em dança. Daí surgiram os giros, as esquivas, os saltos, os cantos. Era golpe e era oração. Arma e refúgio.

Durante muito tempo, capoeira foi considerada crime. Até 1937, seu ensino e prática eram perseguidos pela polícia, associados à marginalidade e à vadiagem — mais um capítulo do racismo institucionalizado que insistia (e ainda insiste) em negar às culturas afro-brasileiras seu valor e direito de existir.

Mas a capoeira sobreviveu. Não pelas mãos do Estado, mas pela coragem dos mestres que resistiram nas ruas, nas praças, nos becos, nas periferias, mantendo viva uma das manifestações culturais mais complexas e belas do mundo.

Patrimônio imaterial da humanidade e do corpo

Hoje, a capoeira é praticada em mais de 160 países e, desde 2014, é reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco. Isso significa que o mundo a enxerga — ainda que muitos brasileiros a ignorem.

Para além de sua importância histórica e identitária, a capoeira oferece benefícios profundos à saúde física e mental, segundo o contramestre Espião:

“Ela melhora o condicionamento físico, porque mistura movimentos intensos e dinâmicos. Exige força, resistência, agilidade. Trabalha a flexibilidade, a consciência corporal, a coordenação motora. E, mais que tudo, é um exercício de saúde mental: reduz o estresse, aumenta a autoestima, ensina foco, disciplina e respeito. A capoeira é cura.”

Estudos publicados pela Revista Brasileira de Medicina do Esporte (2023) apontam que a prática regular da capoeira melhora os índices de saúde cardiovascular, reduz sintomas de ansiedade e fortalece o vínculo social entre praticantes. Em um país em que 19 milhões de pessoas vivem com algum transtorno de ansiedade, segundo a OMS, o dado é revelador.

Capoeira é inclusão — ou não é capoeira

Um dos maiores valores da capoeira é a inclusão. Dentro da roda, não importa o gênero, a idade, a cor da pele ou o saldo na conta bancária. Crianças, adolescentes, adultos e idosos se reconhecem no jogo, no canto, no olhar do outro.

É também ferramenta poderosa de transformação social. Em comunidades periféricas, a capoeira é abrigo para jovens em situação de vulnerabilidade, oferecendo disciplina, identidade e futuro. Projetos como Ginga de Rua (SP), Capoeira Cidadã (BA) e Berimbau de Ouro (RJ) são exemplos vivos de como a capoeira pode salvar vidas.

“Eu era um menino perdido. A capoeira me mostrou que eu podia ter valor. Hoje sou instrutor, dou aula pra crianças do mesmo bairro em que fui salvo”, conta "Nego Velho", 27 anos, morador do Complexo da Maré e mestre em formação.

Ainda é preciso lutar para ser visto

Apesar de toda sua riqueza, a capoeira segue invisibilizada pelas políticas públicas, ignorada pelas grandes academias e subfinanciada pelos editais culturais.

Dos R$ 926 milhões distribuídos pelo Ministério da Cultura via Lei Rouanet entre 2023 e 2024, apenas 1,7% foram destinados a projetos de cultura afro-brasileira, e menos ainda à capoeira especificamente. O dado é do Observatório da Cultura Brasileira.

“É como se o Brasil tivesse vergonha da sua própria ancestralidade. A capoeira é ensinada em universidades nos Estados Unidos e na Europa, mas aqui ainda é tratada como folclore de periferia”, critica a pesquisadora e mestra de capoeira Janaína N’Zinga, professora da UFBA.

A capoeira no pop: da quebrada para o mainstream?

Nos últimos anos, a capoeira tem dado passos tímidos rumo à visibilidade pop. Apareceu em cenas de filmes, coreografias de clipes e até em ensaios de moda. Em 2024, a cantora Iza incluiu um trecho de ladainha em uma de suas performances, homenageando as mulheres da capoeira Angola. A rapper Karol Conká também citou a ginga como referência de resistência em entrevistas recentes.

A moda, a música e o audiovisual estão, aos poucos, flertando com a capoeira — mas a pergunta permanece: será que estão ouvindo de verdade, ou apenas consumindo esteticamente?

Capoeira é política. Capoeira é corpo negro livre.

Num país em que corpos negros são os mais encarcerados, assassinados e silenciados, a capoeira é mais do que dança ou esporte: é um ato político.

É sobre ocupar espaços com dignidade. Sobre dizer “eu existo” com o corpo todo. É sobre manter viva uma memória coletiva que os livros tentaram apagar. É, sobretudo, sobre liberdade.

Gira a roda. Mas gira pra onde?

Em tempos de retrocessos, de discursos de ódio e de apagamentos culturais, a capoeira precisa ser mais do que um espetáculo exótico para turista ver. Ela precisa ser respeitada como aquilo que é: um direito. Uma herança viva. Uma escola de humanidade.

Talvez seja hora de nos perguntarmos:

Se a capoeira foi usada para resistir à escravidão, o que ela pode ensinar agora, em tempos de prisões simbólicas e identidades mutiladas?

A roda está formada. O berimbau já chamou. Agora é com a gente: Vamos entrar no jogo ou continuar fingindo que não escutamos o toque?

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