Inocente, Algemado e Invisível: O Brasil que Condena os Seus e Protege os Culpados
- Ana Soáres
- 19 de jun.
- 3 min de leitura
A prisão injusta de Helvécio dos Santos não é exceção: é parte de uma engrenagem estrutural que criminaliza a pobreza e empilha inocentes nas estatísticas do cárcere. Nesta reportagem especial, a Revista Pàhnorama expõe o que o Judiciário se recusa a encarar — e o que o Brasil insiste em esquecer.

Reprodução/Record Minas
Quando ouviu o veredito de “inocente”, Helvécio dos Santos desabou. Algemado, tremendo, chorando nos braços da advogada. Não havia vitória. Havia alívio. Vergonha. E trauma. Foram dois anos preso injustamente. Dois anos vivendo o que só deveria ser vivido por quem cometeu um crime — não por quem tentou impedir um. Helvécio é apenas um entre milhares de brasileiros encarcerados sob a lógica da suspeita seletiva. Ser pobre, preto e trabalhador, no Brasil, ainda é o bastante para justificar o cárcere.
O retrato da injustiça por dentro das grades
Segundo o relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2023), 41% da população carcerária brasileira está presa provisoriamente, ou seja, sem julgamento. Isso representa mais de 330 mil pessoas vivendo atrás das grades sem condenação definitiva.
O caso de Helvécio: uma engrenagem que nunca falha em punir os errados
Helvécio dos Santos foi preso em abril de 2021, após tentar separar uma briga em uma festa de bairro, em Belo Horizonte (MG). No dia seguinte, a polícia bateu em sua porta. Sem provas materiais, sem reconhecimento direto, sem antecedentes criminais. Ainda assim, prisão preventiva. Dois anos de cela, dor, silêncio e abandono. Absolvido por unanimidade em 2023.
“Só quem viveu lá dentro entende. Dormir em colchão molhado, ser chamado de assassino, ver a mãe chegar chorando. Eu pensava: vou sair daqui morto ou esquecido”, disse Helvécio.
Casos semelhantes: o padrão do erro
Helvécio não está só. Casos recentes expõem um padrão:
Paulo Alberto da Silva Costa (RJ, 2020–2023)

Acusado de 62 crimes, baseado apenas em reconhecimento fotográfico — método já descredibilizado por especialistas. Ficou três anos preso até ser inocentado. A Defensoria Pública do Rio aponta que o caso ainda não teve reparação financeira.
“A polícia me pegou por uma foto. Disseram que eu era igual ao cara do retrato. Perdi tudo. Três anos da minha vida”, disse Paulo em entrevista ao G1.
Carlos Edmilson da Silva (SP, 2012–2024)

Conhecido como “maníaco da Castello Branco”, Carlos foi condenado a 170 anos de prisão por crimes que não cometeu. Foi absolvido após testes de DNA comprovarem sua inocência. O reconhecimento fotográfico — único elemento de condenação — estava errado.
“Apontaram o dedo e minha vida acabou. A Justiça me matou por dentro”, declarou Carlos ao UOL.
Caso Bodega (SP, 1996 – com julgamentos até 2020)

Jovens negros foram presos com base em testemunhos incoerentes, sob tortura. O Estado foi condenado, mas a reparação demorou mais de duas décadas. O caso virou símbolo da repressão policial e das falhas judiciais.
Justiça seletiva: o que dizem os especialistas
A jurista Luciana Alves (PUC-SP) é enfática:
“O sistema penal brasileiro não é falho. Ele funciona perfeitamente dentro da lógica de exclusão que o alimenta. Ele prende quem o Estado quer invisibilizar. E absolve quem tem sobrenome.”
Para o defensor público Vinícius Salles, o reconhecimento fotográfico é o novo “auto de fé”:
“É medieval. Colocam a foto no meio de outras e perguntam para a vítima, emocionalmente abalada: ‘é esse aqui?’ Quase sempre, é. E quase sempre, não era.”
Cadê a reparação, Estado?
Helvécio tenta reconstruir a vida. Mas não tem apoio psicológico do Estado, nem auxílio financeiro, nem emprego fixo. Seus advogados movem ação por danos morais, mas o processo caminha lentamente.
“Estou solto, mas preso por dentro. Sinto que deixei algo lá. Talvez minha esperança”, disse ele.
O caso de Carlos Edmilson é semelhante: após absolvição, passou meses dormindo na rua. Paulo Alberto ainda vive com medo de ser reconhecido — por um crime que não cometeu.
Quem paga pela liberdade roubada?
O Brasil precisa decidir: vai continuar sendo o país que condena inocentes com pressa e absolve culpados com glamour? Ou vai reformar sua Justiça com base em ética, humanidade e reparação?
Casos como o de Helvécio, Paulo e Carlos não são exceção. São estatística. São política pública disfarçada de erro. São violência institucional normalizada. Prova de que o Brasil protege os culpados.
Que cada vida perdida no labirinto do Judiciário sirva para nos tirar do labirinto da omissão.
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