Maternidade consciente
- Ana Soáres
- 29 de ago.
- 3 min de leitura
As mães do Brasil real: quem cuida de quem cuida?

No Brasil, ser mãe continua sendo um ato de resistência. A cada dia, milhões de mulheres equilibram trabalho, casa, filhos, contas atrasadas e um cansaço que não cabe em palavras. Mas ainda assim, o discurso oficial sobre maternidade segue embalado em imagens publicitárias: mães sorridentes, bebês plenos e uma vida que não existe na realidade da maioria.
Segundo dados do IBGE, mais de 11 milhões de lares brasileiros são chefiados apenas por mulheres — a maioria delas negras, moradoras das periferias e com renda abaixo de dois salários mínimos. Ao mesmo tempo, 41% das mães solo enfrentam insegurança alimentar, segundo pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (2022). A pergunta que ecoa é simples e brutal: quem cuida de quem cuida?
O retrato invisível
Maria da Penha, 34 anos, mãe de três, mora em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Acorda às 4h30 para pegar o ônibus e chegar ao trabalho como auxiliar de serviços gerais em um hospital particular.
“Chego em casa por volta das nove da noite. Meus filhos já jantaram com a minha vizinha, que me ajuda quando pode. Eu quase nunca vejo eles acordados durante a semana”, conta, com uma voz que mistura orgulho e exaustão.
Histórias como a de Maria se repetem em diferentes cantos do país. Mulheres que carregam não apenas seus filhos, mas o peso de um Estado que falha em oferecer suporte mínimo: creches em tempo integral, programas de apoio psicológico, políticas de amparo à maternidade solo e acesso a direitos básicos.
O mito da mãe perfeita
Vivemos em uma sociedade que romantiza a maternidade enquanto abandona as mães. O bombardeio midiático insiste em vender a imagem da “mãe perfeita” — produtiva, magra, sorridente, com tempo para cuidar dos filhos, da casa e da própria carreira. Na prática, essa idealização só serve para culpabilizar ainda mais mulheres que, sem rede de apoio, se sentem em dívida eterna com os filhos e com elas mesmas.
“A maternidade no Brasil é atravessada por classe e raça. O que para umas significa escolher a cor do enxoval, para outras é a angústia de não saber se haverá leite e fralda no fim do mês”, analisa a socióloga Ana Paula do Carmo, especialista em gênero e desigualdades.
Cultura do cuidado: um trabalho invisível
O cuidado é o trabalho mais essencial e, ao mesmo tempo, o menos reconhecido da sociedade. A OIT (Organização Internacional do Trabalho) estima que, no mundo, as mulheres realizam 76% de todo o trabalho não remunerado de cuidado. No Brasil, esse número é ainda mais alarmante: elas dedicam, em média, 21,3 horas semanais ao trabalho doméstico e de cuidado, contra 11 horas dos homens (PNAD/IBGE, 2022).
Essa desigualdade não é só numérica: ela se traduz em menos tempo para o estudo, para a vida profissional, para o descanso e para a própria saúde mental.
“É como se ser mãe fosse uma sentença de abdicação permanente de si mesma”, afirma a psicóloga clínica e ativista pela saúde da mulher, Renata Borges.
A força da rede
Ainda assim, mães criam redes invisíveis de solidariedade para seguir em frente. Nas comunidades, é comum vizinhas se revezarem para olhar os filhos umas das outras, mães se apoiarem em grupos de WhatsApp e iniciativas coletivas emergirem, como as “mães do corre”, que organizam rifas, vaquinhas e bazares para garantir comida e material escolar.
O Movimento Mães de Favela, criado pela CUFA (Central Única das Favelas), já impactou mais de 1,5 milhão de famílias com distribuição de cestas básicas e apoio financeiro.
“A gente não pode esperar sentada. Se o governo não olha por nós, nós olhamos umas pelas outras”, resume Joice, mãe de dois, integrante do movimento em São Paulo.
Reflita
O Brasil precisa urgentemente repensar sua relação com a maternidade. Não como um ideal romântico, mas como uma questão de justiça social e de sobrevivência coletiva. Garantir direitos para mães não é apenas cuidar de mulheres — é garantir o futuro de crianças, comunidades inteiras e do próprio país.
A pergunta que fica, diante desse retrato real e sem filtros, é dolorosa e necessária: até quando as mães brasileiras terão que ser heroínas para suprir as falhas de um Estado que insiste em tratá-las como invisíveis?
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