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Morre Arlindo Cruz: o silêncio ecoa do samba

  • Foto do escritor: Ana Soáres
    Ana Soáres
  • 8 de ago.
  • 4 min de leitura
Morre Arlindo Cruz: o silêncio ecoa do samba
Reprodução/Facebook Oficial Arlindo Cruz

“Eles combinaram de nos matar. Mas nós combinamos de não morrer.” — Candeia

Na manhã desta sexta-feira, 8 de agosto, o Brasil perde mais que um artista. Perde um pedaço da alma que canta. Arlindo Cruz, mestre do samba, filho do subúrbio carioca e arquiteto da musicalidade popular, se despede aos 66 anos, após oito anos de uma batalha silenciosa contra as sequelas de um AVC hemorrágico sofrido em 2017. Sua partida não é apenas o fim de uma trajetória musical brilhante. É o adeus a um tempo em que o samba ainda nos lembrava de onde viemos — e para onde ainda precisamos ir.


Morre Arlindo Cruz: o silêncio ecoa do samba
Reprodução/Instagram

A confirmação veio de sua companheira de vida e trincheiras, Babi Cruz, com a dignidade de quem acompanhou de perto a luta de um homem que fez da dor, arte, e da arte, resistência.

Muito além do banjo: o poeta da quebrada

Nascido em 14 de setembro de 1958, no Rio de Janeiro, Arlindo Domingos da Cruz Filho recebeu seu primeiro cavaquinho aos 7 anos. Era um prenúncio do destino. Ainda menino, já ouvia os ecos de uma cidade dividida entre morro e asfalto, entre a dureza da rua e a doçura da música. Aprendeu a tocar de ouvido, como quem escuta o coração do povo.

Candeia, um dos maiores letristas da história do samba, foi seu padrinho musical. E o apadrinhamento era simbólico: de Candeia, Arlindo herdaria a consciência crítica, o compromisso com a negritude e a recusa em transformar o samba em caricatura.

Das rodas ao palco: um cronista do Brasil

Foi no Cacique de Ramos, berço de uma geração de ouro do samba, que Arlindo encontrou sua tribo. Ao lado de Jorge Aragão, Beth Carvalho, Almir Guineto, Zeca Pagodinho e Sombrinha, criou canções que falam de amor, fé, malandragem, injustiça e esperança. Não à toa, sua caneta já rabiscou mais de 550 sambas gravados por outros artistas.

Em 1983, entrou para o Fundo de Quintal, substituindo ninguém menos que Jorge Aragão. Ficou 12 anos. Nesse período, o grupo lançou clássicos como “Seja Sambista Também”, “Só pra Contrariar”, “Castelo de Cera”, “O Mapa da Mina”. O samba ganhava estrutura, harmonia, e sobretudo, poesia.

Mas sua maior vitória talvez tenha sido transformar a vivência do samba em projeto de vida — para além do estúdio, do palco, da avenida.

O homem que cantava o cotidiano com reverência


Arlindo sabia falar das coisas simples com a complexidade que só os mestres dominam. Uma cerveja gelada na laje, um amor que partiu, um barraco que desaba, um filho que não volta — tudo isso cabia em seus versos como quem encaixa tijolo no muro.

“O Arlindo tinha essa magia de transformar a dor em beleza”, me contou Tereza Oliveira, professora e pesquisadora da cultura afro-brasileira. “Ele não era só um músico. Era um contador de histórias. E essas histórias eram nossas.”

No Império Serrano, sua escola de coração, venceu sambas-enredo icônicos. De 1996 a 2007, foram seis vitórias. Depois, passou a compor para a Grande Rio, sempre com um olhar atento às raízes e ao povo. Não era sobre glamour. Era sobre ancestralidade.

Um AVC e a luta silenciosa de Arlindo Cruz

Em março de 2017, Arlindo Cruz sofre um AVC hemorrágico em casa. A notícia, à época, chocou o Brasil. O cantor ficou um ano e meio internado e, desde então, enfrentou sequelas severas. Nos bastidores, Babi, filhos e amigos montaram uma rede de cuidados, afeto e resistência. Arlindo já não se apresentava mais, mas seu legado continuava pulsando, principalmente através de Arlindinho, seu filho, também cantor.

Durante esse período, o Brasil vive um boom de influencers, realities e redes sociais — um outro tempo. Enquanto isso, o sambista se recolhia. Mas sua ausência física não significava esquecimento. Ao contrário. Em cada roda de samba, sua voz era evocada. Em cada esquina, sua melodia ecoava. E nas redes, fãs formavam uma verdadeira comunidade de apoio.

Uma indústria que ainda marginaliza o samba

Mesmo com discos de ouro e platina, Arlindo nunca ocupou o lugar merecido nas grandes mídias. O samba, especialmente o de raiz, ainda é tratado com exotismo ou nostalgia, como se fosse coisa de velho, de subúrbio, de outra época. E talvez seja. Mas é justamente por isso que ele importa.

Segundo dados da ANCINE, menos de 8% das produções audiovisuais financiadas com dinheiro público entre 2015 e 2022 abordaram a cultura popular afro-brasileira. Isso inclui o samba, o jongo, a capoeira e o maracatu.

Por que ainda nos recusamos a celebrar a genialidade preta enquanto ela está viva?

Arlindo é mais que um nome: é um verbete do povo

“Eles têm um padrão de vida elevadíssimo, com ganhos muito acima do plausível para a atividade que exercem.”— delegado Renan Mello, falando sobre influenciadores que lucram com o jogo do Tigrinho, em paralelo ao drama de milhões que vivem da arte verdadeira.

Enquanto isso, o Brasil que perde Arlindo Cruz hoje é o mesmo que assiste a uma geração de influenciadores digitais acumular fortunas em cima da “cláusula da desgraça alheia” — lucros à base das perdas dos mais pobres, seduzidos por promessas de fortuna em caça-níqueis travestidos de jogos.

A contradição é gritante: enquanto a arte popular agoniza, o algoritmo premia o oportunismo.

A eternidade canta baixinho

Hoje, o cavaquinho de Arlindo Cruz está mudo. Mas o silêncio dele é mais ensurdecedor que qualquer gritaria. É o silêncio que grita a ausência de um Brasil que se esvai.

“Meu pai é eterno”, disse Arlindinho nas redes, minutos após o anúncio da morte.

Sim, ele é. Porque o samba é eterno. Porque as letras de Arlindo já estão tatuadas na memória de um país inteiro. Porque ele vive em quem ousa amar, mesmo em meio à precariedade.

Aos que ficam: o que faremos com esse legado?

Mais do que chorar, precisamos aprender. Honrar. Proteger. Financiamos o meme, idolatramos o hype, mas e o artista que nos deu voz?

Arlindo Cruz nos ensinou que ser sambista também é um chamado. Não só à música, mas à vida com mais ternura, dignidade e rebeldia.

O Brasil hoje se despede de um mestre. Que não seja em vão.

E você, o que tem feito para manter viva a cultura que nos mantém de pé?

Porque o samba — como Arlindo — não morre. Mas precisa de nós para continuar vivo.

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