Fui assaltado uma vez. E no Rio de Janeiro. Mais especificamente, em agosto de 1994. Trabalhei e estudei na Cidade Maravilhosa por muitos anos. Andava para baixo e para cima, fosse a pé, de ônibus, metrô, trem... Testemunhei alguns assaltos, confesso. E nessas ocasiões, a gente fica com raiva do assaltante. Um misto de raiva e indignação.
Curiosamente, não fui assaltado nesse período. Fui sê-lo quando trabalhava em Petrópolis (onde moro) e fui ao Rio resolver um assunto pessoal, numa sexta-feira à noite, depois do expediente. Desembarquei na Rodoviária Novo Rio e entrei no ônibus da linha 170, que me deixava próximo à faculdade onde eu me graduara em publicidade e propaganda. Estava indo resolver um pormenor administrativo que ficara para trás. Como o ônibus estava com poucos passageiros, sentei no banco da frente, próximo ao motorista. Àquela época, a roleta e o cobrador ficavam na parte traseira dos coletivos.
O trânsito estava lento na região. Como era ano eleitoral, havia vários “outdoors” com propagandas dos candidatos. Observava-os distraidamente quando um sujeito pulou na minha frente vociferando palavras ameaçadoras e com uma faca em punho. Tomei um susto e perguntei o que estava acontecendo. Ele, um homem negro, de 30 e poucos anos, anunciou o assalto. Havia outro com ele; ambos estavam sentados no banco imediatamente atrás do motorista. Eu, por estar perto deles, do outro lado do corredor, fui feito de refém, vamos assim dizer. Enquanto o comparsa recolhia os pertences dos demais, o outro apontava a faca para mim e, com o olhar cheio de raiva, mandava entregar o que eu tinha.
Tive sorte. Estava apenas com R$ 11,00 na carteira e com um relógio de pulso que estava pedindo para ser trocado. Abri a carteira, entreguei o dinheiro e disse a ele sobre o relógio. Ele o pegou mesmo assim. Era um homem bem apessoado, apesar de mal tratado pela vida. Enquanto ele me fitava, pensava que poderia ter sido diferente para ele caso vivêssemos num país com justiça social. Ele provavelmente era morador de uma favela próxima. Digo isso porque, tempos depois, na mesma região, flagrei-o de longe, tentando assaltar um transeunte, que conseguiu se livrar graças à intervenção de um motorista.
Aquele homem de faca em punho cismou que eu estava armado. Talvez porque eu trajava um casaco. Afinal, estávamos no inverno e eu vinha da Região Serrana, onde faz frio. Foi quando eu fiquei de pé e levantei o casaco para que ele visse que arma não é a minha praia. Ele me mandou sentar, talvez receoso de meu gesto chamar atenção de alguém do lado de fora. O comparsa, então, anunciou que já roubara todos que estavam no ônibus. Daí, eles desceram. Não antes de eu fixar bem meus olhos nos olhos dele e dizer um “Vão com Deus”.
Quando resolvi o assunto na faculdade, peguei dinheiro num caixa eletrônico, tomei um táxi rumo à rodoviária e voltei para Petrópolis. Confesso que fiquei mal naquele final de semana. Não entendia como alguém que nunca havia me visto podia me tratar com tanto ódio. Um ódio injetado naquele olhar. Ódio pelo mundo, pelo local onde ele nascera, por não ter tido uma família bem estruturada, por não ter acesso a uma educação de qualidade, moradia digna... Na segunda-feira, já havia superado o trauma. Dias depois, comprei um relógio novo e segui em frente. A situação me deixou triste, mas em momento algum tive raiva dos assaltantes. Talvez por ter enxergado revolta, carência e desespero naquele olhar repleto de um ódio por tudo.
Havia sido a segunda vez em que me deparara com um olhar injetado de ódio. A primeira fora meses antes, também num ônibus na Cidade nem sempre Maravilhosa. Eu estava indo de Ipanema ao Jardim Botânico quando um garoto negro de uns 12 anos anunciou o assalto. A mim, ele não molestou. Talvez por eu ser alto e estar sentado num daqueles bancos mais altos (o que me deixava mais alto ainda). Ou talvez por eu ter olhado fundo nos olhos dele (estávamos próximos). O menino também não quis nada de duas passageiras idosas. E fez questão de dizer isso a ambas. “Da senhora, não quero nada não!” (Ele foi bem textual).
Curiosamente, descemos no mesmo ponto. Olhei fixamente para ele mais uma vez e tive o ensejo de convidá-lo para conversar, tomar um café. Mas o olhar dele rapidamente se desviou do meu. Então, aquele garoto se evadiu pela noite. Um garoto novo demais para ter tanto ódio injetado no olhar.
No filme “A outra história americana”, estrelado pelo ator Edward Norton, há uma frase, dita na parte final, que me toca profundamente: - A vida é curta demais para tanto ódio. Toda vez que me lembro desta frase, me vêm à mente aqueles dois olhares dos assaltantes. Ambos negros e à margem da sociedade. Ambos vítimas de um ódio secular que as classes dominantes do país nutrem em relação aos menos favorecidos. Um ódio que se manifestou na crueldade para com os escravos; na falta de políticas de inclusão social quando da Abolição; no hábito que as polícias têm de bater nos negros e pobres para que as classes média e alta não sejam importunadas ou de considerarem os negros suspeitos ou réus simplesmente por serem negros; no despeito que a classe média sente em relação às cotas raciais em universidades públicas; na Proposta de Emenda Constitucional 55 (PEC da Maldade) que, em 2016, limitou os gastos em saúde e educação por 20 anos... A lista é lamentavelmente longa e desemboca naqueles olhares negros, eivados de ódio. Um ódio histórico que parece não ter fim, mas precisa ter. Afinal, a vida precisa ser usufruída de outras formas. É preciso deixar de perder tempo repetindo ódios seculares.
A poetisa goiana Cora Coralina tem um poema que muito me emociona. O nome dele é “Saber viver”. Nele, Cora diz não saber se a vida é curta ou longa demais e afirma que ela não tem sentido se não tocarmos o coração das pessoas. Uma das formas de fazê-lo seria por meio do “amor que promove”.
Quando se fala em amor, muitos pensam em algo açucarado ou piegas, principalmente a turma que acha que matar resolve. Ledo engano. O amor é algo tão forte a ponto de resultar em promoção e justiça social. Todos com trabalho digno e bem remunerado, acesso a cultura, saúde, educação e lazer de qualidade... E também em justiça eficiente, que recupere a pessoa e a devolva saudável ao meio social. Afinal, punir de forma justa e piedosa e recuperar a pessoa também é uma forma de amar. É desse amor que promove do qual falamos e é dele que todos nós, seres humanos, sentimos falta. E como o mundo é carente desse amor e nem se dá conta!
Marcelo Teixeira
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