Tylenol, Trump e o risco da desinformação: quando a política ameaça a saúde pública
- Ana Soáres

- 22 de set.
- 3 min de leitura

Há mais de sete décadas, o Tylenol ocupa as prateleiras do mundo como um dos analgésicos mais consumidos. Presente em quase 600 produtos à base de paracetamol, tornou-se sinônimo de alívio rápido para febre e dor. Agora, em pleno 2025, o nome da marca ressurge no epicentro de uma disputa que não é apenas científica, mas também política, econômica e social.
Na última segunda-feira, o presidente Donald Trump declarou, em rede nacional, que o uso do paracetamol durante a gravidez poderia causar autismo. Ao seu lado, o secretário de Saúde, Robert F. Kennedy Jr., e o comissário da FDA, Marty Makary, endossaram a afirmação e chegaram a indicar a leucovorina — um medicamento à base de vitamina B usado na quimioterapia — como suposta alternativa para tratar crianças autistas. O problema? Não há comprovação científica que sustente essas alegações.
Tylenol, autismo e política: a polêmica criada por Trump
“Não tome Tylenol. Lute como o inferno para não pegá-lo”, disse Trump em tom alarmista, contrariando décadas de consenso médico internacional. Esse não é um detalhe menor: quando um presidente emite ordens categóricas em temas de saúde pública, ele não fala apenas com médicos, mas com milhões de mulheres que hoje vivem a delicadeza de uma gestação.
O impacto é imediato. De um lado, famílias entram em pânico; do outro, ações da Kenvue — empresa que assumiu o Tylenol após o desmembramento da Johnson & Johnson — despencam no mercado. O valor de uma marca construída em 70 anos balança ao sabor de declarações políticas.
Ciência ignorada
Pesquisas sobre o paracetamol e possíveis efeitos no neurodesenvolvimento não são novas. Em 2021, uma revisão de 46 estudos avaliou riscos relacionados ao autismo e ao TDAH. O resultado: embora mais da metade apontasse alguma associação, os próprios cientistas foram claros em frisar que associação não significa causalidade. A genética e outros fatores ambientais seguem como determinantes mais sólidos.
“Não podemos responder à pergunta sobre causalidade — isso é muito importante esclarecer”, destacou Didier Prada, epidemiologista do Mount Sinai e coautor da revisão, em entrevista ao New York Times.
Agências de saúde da Europa e dos EUA chegaram à mesma conclusão: as evidências são inconclusivas. A recomendação médica permanece a mesma de sempre: cautela, uso apenas quando necessário, e sob orientação profissional.
Desinformação e precedentes perigosos
A cena lembra os dias sombrios da pandemia, quando Trump sugeria desde o uso de desinfetantes até drogas sem eficácia comprovada contra a Covid-19. Agora, o palco é outro, mas o roteiro é o mesmo: a ciência é deslegitimada, e a dúvida vira arma política.
Essa disputa não se restringe aos consultórios. Ela escancara um problema global: a erosão da confiança em instituições científicas e regulatórias. A cada vez que a medicina é atacada, abrem-se portas para charlatanismo, automedicação e crises de saúde pública.
As consequências sociais
Se o autismo ainda carrega tanto estigma, é porque a sociedade insiste em buscar culpados em vez de compreender a complexidade do espectro. Ao culpar um comprimido, simplifica-se um transtorno que envolve genética, ambiente, educação, acolhimento e políticas públicas.
No Brasil, onde 2 milhões de pessoas estão dentro do espectro autista (IBGE, 2023), a repercussão internacional importa. Quando Trump fala, ecoa nos consultórios de São Paulo, nas maternidades do Rio e nos grupos de mães pelo WhatsApp.
O que vem depois
O que está em jogo não é apenas a reputação de um medicamento, mas a saúde de mulheres grávidas que podem, por medo, recusar o único tratamento seguro contra febres durante a gestação — condição que, esta sim, está cientificamente comprovada como risco ao desenvolvimento fetal.
A pergunta que fica é direta: quantas vidas serão colocadas em risco em nome de uma narrativa política?
O episódio Tylenol mostra mais do que uma batalha entre ciência e poder: revela o quanto estamos vulneráveis à desinformação em tempos de crise. E nos convoca a refletir — vamos continuar aceitando que a saúde pública seja palco de disputas ideológicas, ou vamos cobrar responsabilidade daqueles que têm na palavra o poder de salvar ou condenar vidas?







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