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A relação entre o filme "Ainda Estou Aqui" e o livro "O Processo", de Kafka

Érica Corrêa

Atualizado: 5 de fev.

Na obra The Decay of Lying (1891), Oscar Wilde escreve: “a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”. Em 1° de dezembro de 2024, Selton Mello fez uma postagem nas redes sociais:


Ainda Estou Aqui

“esperando

para fazer uma cena

não mais uma

aquela cena

eternizada em 35mm

Rubens foi para nunca mais voltar

uma das coisas mais difíceis que já fiz

porque não podia me comover com o que sabia

ele não sabia

na hora, sem combinar, sorri para ela

senti que era a coisa certa

ouço muito o que sinto

uma cena de um filme

não mais um

aquele filme

que levou o público aos cinemas de novo

iluminando o presente contando do passado

atraindo um interesse gigante pelo cinema brasileiro

muita coisa

muitas camadas

sou grato por fazer o que amo

sigo em movimento

sempre recomeçando

esse é meu círculo virtuoso”


O episódio que o ator se refere é quando seu personagem, Rubens Paiva, é levado para a delegacia e se despede de Eunice. O filme retrata maravilhosamente as lembranças da família sobre aquele dia. Não foi dado um motivo para levarem Paiva de casa. Era mais um dia na cabeça da família e ele logo estaria de volta. Não tinha mandato, não tinha razão. Simplesmente levaram ele. Inúmeras vezes nos deparamos com um cenário digno de uma cena de filme, e outras tantas cenas parecem ser de ficção científica. Foi uma cena real Rubens Paiva ter sido levado por policiais. No entanto, ao pensarmos o cenário do início da década de 70, essa prisão se torna macabra. Foi evocado um suposto envolvimento com o guerrilheiro Carlos Lamarca; nunca provado. Foi uma execução sem sentido, covarde, como muitos assassinatos daquele período. Rubens foi morto nas dependências de um quartel militar entre 20 e 22 de janeiro de 1971. Muitas Eunices, Marias e Clarisses ficaram anos sem saber o que aconteceu com seus maridos.


Com algumas diferenças, o cenário e contexto da prisão de Rubens Paiva nos remetem muito ao romance “O Processo” de Franz Kafka. Na história, Josef K., o chefe de escritório de um banco, é inesperadamente preso por dois agentes não identificados de uma agência não especificada, por um crime não especificado, em seu 30º aniversário. Ele não é aprisionado, mas deixado "livre" e instruído a aguardar orientações do Comitê dos Assuntos. Josef é ordenado a comparecer ao endereço do tribunal no próximo domingo, sem ser informado sobre o horário ou sala exata. Após um período de exploração, Josef encontra o tribunal no sótão, é severamente repreendido por sua demora e desperta a hostilidade da assembleia depois de fazer um apaixonado discurso sobre a absurdidade do julgamento e o vazio da acusação.


Josef K. nunca é informado por que motivos está sofrendo o processo e sustenta sua inocência quase até ao fim. Ao declarar inocência, a Josef é feita a pergunta: “Inocente de quê?”. Eunice nunca conseguiu respostas, não havia corpo para velar e seu marido era considerado “desaparecido”. Ela começou uma longa batalha para descobrir o que aconteceu, chegando a ser presa no Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), onde permaneceu por 12 dias. Ela toma a decisão de cursar Direito e lutar ela mesma por seus direitos e os de seu falecido marido. 25 anos após o desaparecimento de Rubens, em 1996, Eunice consegue a emissão do Atestado de Óbito.


A obra de Kafka é um reflexo da relação do autor com o poder; a burocracia desumana, a perseguição, o vazio existencial e o caos silencioso que este experimentou sendo judeu no Império Austro-Húngaro. "Ainda Estou Aqui" conta a história real de uma mulher sofrendo as consequências de uma ditadura militar. Como a própria Fernanda Torres faz questão de lembrar, as ditaduras militares latino-americanas são parte do contexto global do que estava acontecendo no mundo, a Guerra Fria. "O Processo" foi publicado em 1925 após a morte de Kafka e começou a ser escrito em 1914. São mais de 100 anos das mídias da época retratando as consequências do autoritarismo e o perigo e dor de estar em um regime onde as portas são fechadas antes mesmo de serem abertas.


100 anos separaram a história real da literária e a lição continua estudada e não aprendida.


Érica Corrêa

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Lisete Bertotto correa
Lisete Bertotto correa
Feb 08

Ótima crônica. Parabéns

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