Aline Pereira Ghammachi e o Eco da Inquisição: quando a Igreja ainda acende suas fogueiras
- Ana Soáres
- 1 de jul.
- 3 min de leitura

Por mais que os corredores do Vaticano hoje estejam banhados por luzes de LED e discursos de acolhimento, o caso da freira brasileira Aline Pereira Ghammachi expõe um mecanismo que, em essência, não é muito diferente da Santa Inquisição — aquela que queimava mulheres vivas sob o pretexto da fé, mas, na prática, eliminava qualquer uma que ousasse pensar, liderar, ou simplesmente ser... mulher.
Hoje, não há chamas visíveis. Mas o fogo continua aceso — disfarçado de decreto, de silenciamento institucional, de perseguição hierárquica.
Da fogueira às salas secretas: o assédio como arma e castigo
Aline não foi “queimada” no sentido literal. Mas foi incendiada moral, espiritual e psicologicamente por um sistema clerical machista e inquisitorial, que a puniu não por erros, mas por qualidades: por ser jovem, por ser brasileira, por ser bonita e por ser líder.
O abade que articulou sua queda, frei Mauro Giuseppe Lepori, ousou verbalizar o que o Vaticano raramente admite:
“Ela é bonita demais para ser freira. ”Ou seja, sua aparência era uma ameaça à castidade alheia, à autoridade masculina, ao silêncio imposto às mulheres. É o mesmo argumento da Inquisição, que queimava "feiticeiras" por serem atraentes, independentes, por dominarem ervas ou por fazerem o parto de outras mulheres.
A beleza de Aline virou acusação. A liderança dela virou ameaça. E o que foi a consequência? Isolamento. Silêncio forçado. Expulsão sumária. Um processo administrativo que lembra, de forma estarrecedora, os tribunais eclesiásticos medievais, onde padres julgavam mulheres sem defesa, por denúncias anônimas, com base em boatos, intrigas ou... medo.
Assédio sexual espiritual e institucional

O que frei Lepori fez com Aline — ao minar seu cargo, destruir documentos de arquivamento e declarar que “ninguém acreditaria numa mulher jovem e bonita” — é assédio. Não um assédio sexual explícito, mas um assédio simbólico, profundo, um estupro de dignidade, comum na estrutura da Igreja Católica, onde mulheres sempre foram reduzidas a submissas, castas, obedientes — e jamais autoridades.
O que houve foi abuso de poder e de gênero. Aline foi punida porque homens não sabiam lidar com sua presença de luz, de comando e de visão progressista.
É curioso que a mesma Igreja que ocultou por décadas os padres pedófilos, que protegeu cardeais acusados de abuso, seja tão rápida e severa quando uma mulher começa a brilhar num mosteiro. A punição é exemplar. É midiática. É pública. Mas o motivo real não está em nenhuma regra canônica quebrada. Está na inaceitável rebeldia de ser mulher num espaço dominado por homens há mais de 2 mil anos.
Cristianismo e suas falhas sorrateiras
Sob a cruz e os votos de humildade, há um cristianismo institucional que se alimenta da desigualdade entre os sexos. A Igreja Católica nega ordenação às mulheres, nega-lhes voz em decisões dogmáticas, e as limita ao papel de servas silenciosas. O "Jesus que andava com prostitutas e curava mulheres" foi sequestrado por uma elite clerical que morre de medo do feminino sagrado.
Aline ousou ser a exceção. Ousou empreender, acolher autistas, produzir vinhos, dar entrevistas, rir, ser admirada. Na teologia masculina do Vaticano, isso é imperdoável.
Inquisição contemporânea
A Inquisição queimava mulheres com lenha e óleo. Hoje, a Igreja as queima com silêncio, difamação, isolamento e rituais administrativos cobertos de latim e hipocrisia.
A sentença é a mesma: Mulheres livres e potentes devem ser punidas. Se antes o pretexto era a bruxaria, agora é a "instabilidade psíquica", o "desvio administrativo", ou simplesmente "a beleza".
O que aconteceu com Aline não é exceção — é o sistema funcionando como sempre funcionou. Só que agora, o mundo vê, denuncia, documenta.
A Igreja que prega amor e igualdade tem medo de uma mulher inteira. E Aline Pereira Ghammachi — gostem ou não — é símbolo vivo de que as fogueiras ainda ardem. Mas desta vez, não é ela quem vai queimar. É a estrutura que a perseguiu que arde, aos olhos da história.
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