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Caridade para com os criminosos

  • Foto do escritor: Marcelo Teixeira
    Marcelo Teixeira
  • há 6 dias
  • 5 min de leitura
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            “Socorro, socorro. Meu Deus. Nos ajudem. Precisamos de vocês”.

 

O apelo acima ecoou (e talvez ainda ecoe) de forma dilacerante, em dezembro de 2023, pelas dependências da Penitenciária 1 da cidade de Presidente Venceslau (SP). Proferidos por detentos que cometeram faltas graves dentro da prisão ou que estejam ameaçados de morte por companheiros de detenção, os gritos de desespero vieram do setor conhecido como trem fantasma. Nele, os presos ficam em total isolamento e na escuridão por períodos mínimos de um mês, sem condições de higiene (dividem o exíguo espaço com ratos e baratas) e sem direito a banho de sol, o que, inclusive, vai contra o previsto na Lei de Execução Penal (LEP).

 

Essas são apenas algumas das várias desumanidades que reinam no local e que foram denunciadas aos órgãos competentes. Pelo que apurou o repórter Josmar Jozino, do portal de notícias UOL, houve vistoria no local, que constatou o que ora narro. As explicações já estavam sendo cobradas às entidades encarregadas de zelar pela integridade dos presos em SP.

 

Quando li a respeito, tive a curiosidade de verificar, no perfil que o UOL mantém numa rede social, os comentários dos leitores a respeito do ocorrido. Deparei-me com coisas do tipo: “As vítimas deles devem ter gritado por socorro também. Eles tiveram pena?”, “É só não roubar, matar, assaltar que você não vai pra lá.”, “Também gritei quando a arma estava na minha cabeça etc.”. Felizmente há também comentários condenando tamanha barbárie, evidenciando que não é assim que se reabilitam presos e deixando claro que, assim, eles saem piores do que quando entraram e também com um ódio mortal da estrutura social que os corrói dessa maneira quando deveria reabilitá-los.  

 

À mesma época, no bairro de Copacabana, Zonal Sul da cidade do Rio de Janeiro, vários ladrões promoveram um arrastão e roubaram os celulares de transeuntes. Um empresário, ao tentar defender uma mulher da sanha deles, foi agredido a socos. Após a prisão de alguns deles, eu, assistindo à cena do agressor do empresário sendo algemado e colocado no camburão, comentei, também numa rede social, que o destino desses rapazes poderia ter sido diferente se eles tivessem tido acesso à saúde, educação e moradia de qualidade, trabalho digno etc. Para quê? Fui alvo de toda sorte de impropérios. Disseram para que eu levasse o bandido para casa; desejaram que ele agredisse minha mãe e por aí vai. Deduzi que seria inútil argumentar com quem só enxerga os fatos pelo ângulo da vindita e apaguei meu comentário.

 

Esses acontecimentos me remeteram a um dilacerante artigo que li em 2016 e cujo link felizmente guardei. Chama-se “O odor nauseante do presídio misturado ao sangue”; foi escrito pelo juiz baiano Gerivaldo Neiva e narra como é impactante aos sentidos humanos (olfato em primeiro lugar) se deparar com o cotidiano dos corredores e celas de um presídio. Segundo ele, a “mistura nauseante de fezes, urina, esgoto, suor, roupas sujas e emboloradas, doenças de pele e do couro cabeludo, corpos sujos e comida azeda” provoca constantes ânsias de vômito em quem se aventura a visitar tais lugares. Isso sem falar no calor insuportável, nos dentes podres dos detentos, nas frieiras entre os dedos dos pés, entre outras imundícies desumanas. Segundo Neiva, é quase nula a possibilidade de esses homens saírem reabilitados quando cumprirem suas penas. Sairão revoltados e, muitas vezes, cooptados por facções criminosas. Além disso, voltarão para o meio onde nasceram e, por conseguinte, se depararão com as mesmas dificuldades de antes: falta de escolaridade e de oportunidades de trabalho, preconceito social e principalmente racial, já que a maioria da população carcerária do nosso país é negra. Uma engrenagem que resulta num círculo vicioso a arrastar o ex-presidiário à reincidência e, muitas vezes, à morte trágica.

 

Régis, amigo de longa data funcionário do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), foi testemunha ocular da falta de humanidade com a qual os detentos costumam ser tratados, muitas vezes por quem deveria resguardá-los. Homens acusados de tráfico de drogas e ligados a uma facção criminosa chegaram ao fórum para tomar ciência de sentença junto ao juiz. Vieram a bordo de uma viatura. Dia de sol escaldante no RJ. Os policiais que conduziam o veículo foram comer algo e deixaram-no debaixo do sol com os presos dentro da caçamba, algemados, mal acomodados e suando em bicas. Cerca de 40 minutos depois, voltaram e levaram os detentos para serem arguidos pelo juiz. Régis, com o senso de humanidade que lhe é peculiar, resolveu dar água para os presos. Os homens da lei não gostaram e protestaram. Régis foi firme e disse que, dentro do fórum, quem mandava eram ele e os demais funcionários. Os detentos, então, beberam água sob o protesto dos agentes de segurança, que, findo o episódio, foram embora escoltando os prisioneiros e batendo com os coturnos no chão, tamanha a raiva.

 

Temos, no caso dos presídios e na situação enfrentada por Régis, a questão grave do Estado fazendo papel de bandido. E no episódio de Copacabana e também no da cidade de Presidente Prudente, pessoas querendo ser bandidas para eliminar os criminosos e rechaçando os direitos humanos que, nas palavras do advogado e pesquisador Caio Rivas, não existem para defender bandidos, mas para que o Estado (e também a população em geral) não vire bandido.

 

Por mais difícil que possa parecer, entendamos que justiça não é vingança. E tenhamos sempre em mente que a criminalidade que assola nosso país é fruto de uma injustiça social secular, ou seja, remonta aos tempos da escravidão. Ainda por cima, é potencializada pelo capitalismo selvagem, que dilapida principalmente a vida dos que têm poucos recursos materiais.

 

Talvez muita gente não se dê conta, mas muitos dos ditos cidadãos de bem pelos quais passamos nos shoppings, hotéis e restaurantes tenham muito mais a ver com a violência estrutural de cada dia do que possamos imaginar. No livro “Globalização: as consequências humanas”, o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman chama atenção para o fato de que o bandido pé-de-chinelo existe porque o dinheiro que deveria chegar até ele na forma de políticas públicas de promoção social (saúde, educação, trabalho, moradia etc.) desaparece nos desvãos da corrupção generalizada. No entanto, ninguém teme encontrar, numa rua deserta e escura, um empresário que participa de licitações fraudulentas, um político que desvia dinheiro da merenda escolar ou um executivo que superfatura obras. É devido a estes bandidos de alto escalão, todavia, que existem os assaltantes que invadem casas ou nos atacam nos espaços públicos.

 

Trago este assunto à tona devido ao recente massacre ocorrido nos complexos de favelas da Penha e do Alemão. Muitos classificaram a operação como exitosa. No entanto, o número alto de pessoas mortas (121) escancara o contrário. Exitosa seria se os criminosos fossem presos sem um tiro disparado. Exitosa seria se quatro policiais não tivessem perdido a vida física. Exitosa será quando todo os presidiários tiverem comida de qualidade, acompanhamento psicológico, instalações confortáveis e salubres e todas as oportunidades de reerguimento social e moral. Exitosa será quando “invadirmos” a favela com cultura, educação, esportes, lazer, água potável, moradias dignas e sustentáveis... Por fim, seremos todos exitosos quando abraçarmos modelos civilizatórios cada vez mais cooperativos e inclusivos.

 

Marcelo Teixeira

 

 

BIBLIOGRAFIA:

 

1.    BAUMAN, Zygmunt – Globalização: as consequências humanas, 1ª edição, 1999, Jorge Zahar Editora, Rio de Janeiro, RJ.

2.    JOZINO, Josmar – Detentos gritam por socorro em celas do “trem fantasma” em presídio de SP. Disponível em www.noticias.uol.com.br

3.    NEIVA, Gerivaldo – O odor nauseante do presídio misturado ao sangue. Disponível em www.jusbrasil.com.br

4.    R7 – Homem que deu soco em idoso em assalto em Copacabana é preso no Rio de Janeiro. Disponível em www.noticiasr7.com

5.    RIVAS, Caio – Direitos humanos não existem para defender bandido, existem para impedir que o Estado se torne o bandido. Disponível em www.jusbrasil.com.br

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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