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[CRÍTICA] A SOBRANCELHA É O BIGODE DO OLHO – o humor como resistência e memória

  • Foto do escritor: Manu Cárvalho
    Manu Cárvalho
  • 4 de abr.
  • 5 min de leitura

LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho

O que torna o documentário especialmente necessário em 2025 é sua atualidade.
O que torna o documentário especialmente necessário em 2025 é sua atualidade. (Foto: Reprodução / Adoro Cinema)

Quantas vezes você riu de uma crítica social bem colocada? Aquela piada certeira que, com leveza, aponta absurdos, hipocrisias e injustiças que muitos têm medo de nomear? O Brasil tem tradição nessa arte de “rir para não chorar”. E um dos maiores nomes da história desse riso transformador é Aparício Torelly, o eterno Barão de Itararé.


Em “A Sobrancelha é o Bigode do Olho”, que estreou em 3 de abril de 2025 nos cinemas brasileiros, o diretor Alexandre Dacosta resgata esse personagem lendário com a ousadia que ele merece. O documentário — que leva o título de uma das frases mais inusitadas do Barão — convida o espectador a reencontrar uma figura ímpar da nossa história: um homem que transformou a crítica em crônica, a indignação em ironia, e a repressão em resistência criativa.


Quem foi Aparício Torelly? Um libertário de sobrancelha levantada

Antes de tudo, é preciso lembrar quem foi esse tal Barão. Aparício Fernando Torelly nasceu no Rio Grande do Sul em 1895 e construiu sua carreira no jornalismo político, ganhando fama nos anos 1930 como fundador do jornal A Manha (isso mesmo, sem acento), um trocadilho com o conservador A Manhã. Em tempos de censura e ditadura, o Barão ironizava os poderosos com manchetes e frases que, até hoje, são relembradas como aforismos geniais.


Sua maior arma era a palavra. E ele a usava com precisão cirúrgica: "De onde menos se espera é que não sai nada mesmo." — dizia. Crítico ferrenho de Getúlio Vargas, foi perseguido, preso, e mesmo assim jamais perdeu o humor. Foi o primeiro político brasileiro a lançar sua candidatura ao Senado pelo então recém-criado Partido Comunista Brasileiro. E não deixou de rir nem mesmo diante do cárcere: dividiu cela com Graciliano Ramos, outro gigante das letras.


O documentário parte justamente desse ponto: resgatar não apenas a biografia, mas o espírito do Barão. E o faz de maneira inventiva, respeitosa e divertida — como ele gostaria.


Narrativa com alma, não com cronologia

Sob a direção de Alexandre Dacosta, A Sobrancelha é o Bigode do Olho rompe com o formato engessado dos documentários tradicionais. Não há entrevistas intermináveis ou narração em tom grave. Há, sim, uma aposta em elementos cênicos, trechos dramatizados, passagens animadas e momentos de puro delírio — mas sempre amparados por um rigor documental.


A inspiração vem do livro de Ivan Jaf, que assina o roteiro. Sua “autobiografia inventada” do Barão funciona como fio condutor da obra: mistura ficção e realidade para capturar aquilo que é mais fiel à essência do biografado — sua irreverência. O resultado é uma narrativa que parece um manifesto. Um convite ao riso que incomoda. À leveza que denuncia.


Márcio Vito e o Barão que renasce com sarcasmo

No papel do Barão está Márcio Vito, e sua atuação é, em uma palavra, encantadora. Ele não interpreta Torelly como uma caricatura. Não há exageros, nem imitações baratas. Há, sim, uma entrega verdadeira à persona irônica, provocadora e sábia que foi o Barão de Itararé.


Com trejeitos sutis, olhares maliciosos e uma dicção que equilibra teatralidade e autenticidade, Márcio conduz o público por fragmentos da vida do personagem — da infância no interior gaúcho à militância comunista, do jornalismo mordaz aos anos de silêncio e ostracismo. Em cada momento, sentimos a presença de alguém que acreditava profundamente que a inteligência pode ser uma forma de resistência.


A estética do riso: direção de arte, trilha e edição

Visualmente, o filme é uma ode ao absurdo criativo. Mistura animações gráficas com imagens de arquivo, encenações com recortes históricos, e tudo isso com uma paleta vibrante e uma montagem ágil, que respeita a fragmentação do pensamento do Barão. Há um cuidado quase artesanal com os detalhes, desde os figurinos até a escolha das frases que aparecem na tela — todas afiadas, como ele gostava.


A trilha sonora acompanha esse espírito: é ora debochada, ora melancólica, ora jazzística. E a edição é cuidadosa o suficiente para nos manter no fluxo sem jamais nos distrair da mensagem principal: por trás das piadas, há sempre um soco. E por trás do soco, uma esperança de mudança.


Humor político: um legado que ainda pulsa

O que torna o documentário especialmente necessário em 2025 é sua atualidade. Em tempos em que a liberdade de expressão é ameaçada em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, revisitar figuras como o Barão de Itararé é mais do que um exercício de memória — é um ato político.


Aparício Torelly não era apenas engraçado. Ele era inteligente, crítico, e profundamente comprometido com as causas populares. Seu humor era, antes de tudo, um instrumento de denúncia. E essa postura encontra eco em humoristas contemporâneos, de Gregório Duvivier a Marcelo Adnet, que usam a sátira como forma de resistência. O documentário dialoga com essa linhagem — sem precisar nomeá-la diretamente. Está tudo ali, nas entrelinhas.


A voz de quem riu antes da censura cair

Durante a exibição do documentário em Vitória da Conquista, o diretor e o roteirista participaram de debates com o público. Em meio aos aplausos, ficou claro o impacto emocional da obra. Para muitos, foi a primeira vez que ouviram falar de Aparício Torelly. Para outros, um reencontro com um velho conhecido da cultura nacional.


As sessões contaram com apoio da Lei Paulo Gustavo, e foram promovidas pela Umbuzeiro Filmes, num esforço conjunto de levar produções brasileiras de valor histórico e cultural a mais pessoas. E deu certo. O riso no cinema não era de piada vazia. Era de identificação. De alívio. De reconhecimento.


O Barão hoje: ainda temos espaço para a ironia?

Há uma pergunta que o filme não responde diretamente, mas que ecoa após os créditos: ainda há espaço para figuras como o Barão de Itararé? Em tempos de redes sociais, cancelamentos, tribalismos e guerras de narrativa, o humor perdeu parte de sua função crítica? Ou só mudou de formato?


O documentário não tenta responder. Mas propõe que olhemos para o passado não como nostalgia, mas como mapa. Talvez rir continue sendo uma forma de resistência. Talvez precise apenas de novos códigos. Ou de mais coragem.


A Sobrancelha é o Bigode do Olho: Um filme necessário, engraçado e profundamente político

“A Sobrancelha é o Bigode do Olho” é tudo aquilo que um bom documentário deve ser: informativo, envolvente e provocador. Mas é mais do que isso. É também um filme que acredita no poder do riso como ferramenta de mudança. Que entende que contar a história de um humorista não é contar piadas, mas explicar por que elas ainda fazem sentido.


É um documentário para quem ama a liberdade. Para quem acredita que o pensamento crítico não precisa ser sisudo. E, principalmente, para quem nunca desistiu de usar a inteligência como arma contra a ignorância.


Nota final: ⭐⭐⭐⭐ (4/5)

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