[CRÍTICA] ABÁ E SUA BANDA (2025): uma viagem musical pela identidade, resistência e celebração da cultura brasileira
- Manu Cárvalho
- 18 de abr.
- 5 min de leitura
LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho

Em tempos em que a cultura pop é dominada por produções padronizadas e internacionalizadas, é revigorante ver uma animação brasileira que não só abraça nossas raízes, mas as transforma em instrumento de resistência, poesia e pertencimento. “Abá e Sua Banda”, longa de Humberto Avelar, que estreou em 17 de abril de 2025, é exatamente isso: uma ode à arte como força de transformação e uma narrativa carregada de doçura, ritmo e consciência.
Com personagens inspirados em frutas tropicais e cenários que misturam natureza exuberante e cultura popular, o filme propõe uma aventura que fala diretamente ao coração, sem subestimar a inteligência das crianças nem desconsiderar a sensibilidade dos adultos.
Uma história embalada pela coragem de ser quem se é
Abá é um jovem príncipe do Reino do Pomar — um território fictício onde todos os habitantes são frutas antropomorfizadas. Ele deveria, em tese, se preparar para suceder o pai, o rígido rei Caxi. Mas o que Abá realmente deseja é ser músico. O sonho não é bem aceito pela família real, que enxerga a arte como algo trivial. Disfarçado de plebeu, o protagonista forma uma banda com seus amigos Ana, uma banana percussionista, e Juca, um caju animado e sonhador.
O trio busca participar do Festival da Primavera, a mais importante celebração do reino, ao mesmo tempo em que enfrenta as ameaças do autoritário Don Coco, que deseja banir toda forma de expressão artística e instaurar a uniformidade cultural. Entre canções, perseguições, diálogos emocionantes e descobertas pessoais, a jornada de Abá vai se revelando como um rito de passagem não apenas individual, mas coletivo.
Estética visual: o Brasil visto com olhos de aquarela
O que mais chama atenção logo nos primeiros minutos do filme é a riqueza visual. A fusão de animação 2D com técnicas em 3D é feita com uma elegância pouco vista até mesmo em produções internacionais. Os cenários são inspirados em paisagens tropicais brasileiras — com flora vibrante, detalhes de folhas, texturas de solo e céu que parecem extraídos de um caderno de pintura. É como mergulhar em uma versão encantada da Mata Atlântica.
As cores têm função narrativa: o azul predomina nas cenas do palácio, onde tudo é ordem e contenção; já os tons quentes — amarelos, vermelhos, verdes intensos — dominam os momentos de liberdade, arte e festa. Essa escolha estética ajuda o público a sentir o contraste entre repressão e liberdade, entre autoridade e criação.

Trilha sonora: o coração do filme bate no compasso da música
Se há algo que torna “Abá e Sua Banda” inesquecível é sua trilha sonora. Com direção musical de André Mehmari e participações de Milton Guedes e Silvia Fraiha, a música é o fio condutor da narrativa — e não apenas um adorno.
As composições transitam por gêneros que vão do maracatu ao samba-reggae, passando por funk melódico, baião e cantigas de roda. Cada canção representa um momento interno dos personagens, funcionando como monólogos emocionais. A canção “Batida do Coração”, interpretada por Ana no momento de maior fragilidade da banda, é uma dessas surpresas: doce, delicada e potente.
As letras foram escritas de forma a atender tanto o público infantil quanto os adultos atentos, e há trechos que, de tão sensíveis, ficam na memória como poesia cantada. A trilha é, sem dúvida, uma das mais bem integradas ao roteiro em toda a história recente da animação nacional.
Vozes que emocionam: um elenco comprometido com a entrega
A dublagem brasileira é uma aula de como se fazer um trabalho de voz com alma. Filipe Bragança dá voz a Abá com ternura e inquietação, oscilando entre timidez e coragem com extrema naturalidade. Sua interpretação passa verdade, especialmente nas cenas em que o personagem precisa se impor ao pai ou vencer os próprios medos.
Zezé Motta, como Mãe Manga, entrega uma das performances mais tocantes do ano. Sua voz carrega ancestralidade, história e emoção. Ela é o símbolo da sabedoria que não vem dos livros, mas da escuta e da experiência. Cada frase que diz carrega mais do que sentido — carrega afeto.
Rafael Infante, no papel do vilão Don Coco, consegue imprimir carisma e ameaça em doses equilibradas. Ele não é um vilão de desenhos animados caricatural, mas um personagem com discursos sedutores que, quando olhados de perto, refletem ideologias perigosas que ainda existem fora da ficção.

Uma animação para todas as idades — e para todos os tempos
É comum ver animações rotuladas como "filmes infantis", mas "Abá e Sua Banda" transcende essa definição. O que o torna especial é sua capacidade de dialogar com questões adultas sem perder o encanto da infância. O roteiro traz referências à censura cultural, à desigualdade social e à importância da expressão artística como instrumento de resistência.
É um filme sobre sonhar, sim. Mas também sobre ter coragem de sonhar quando tudo parece empurrar na direção contrária. Sobre como é necessário defender a arte, mesmo quando ela não é reconhecida como essencial. E sobre como toda música carrega uma história — uma dor, uma lembrança, um pertencimento.
Sutilezas e metáforas que merecem ser notadas
A riqueza simbólica da narrativa é outro trunfo. O personagem do rei Caxi, por exemplo, é retratado como alguém que se esconde atrás da rigidez por medo de parecer vulnerável. Já Don Coco, ao tentar uniformizar os sons do reino, representa a tentativa de apagamento cultural que tantos povos enfrentam.
Há também uma linda metáfora sobre sementes: Mãe Manga diz que “cada música é uma semente que precisa de solo e tempo”. A fala ecoa no clímax da história, quando as canções de Abá se tornam ferramenta de reconstrução do reino — e, mais ainda, de reconexão entre pai e filho, entre o novo e o antigo, entre quem somos e quem escolhemos ser.

Representatividade que nasce da terra
Uma das grandes belezas de "Abá e Sua Banda" é o cuidado com a representatividade. Não só pela composição dos personagens, que incluem frutas de todos os tamanhos, cores e estilos — mas pelas vozes, pelos ritmos, pelos valores. A diversidade não é só visual: é musical, narrativa e política.
Esse cuidado, que passa pela escolha de elementos da cultura afro-brasileira, do Nordeste e do interior, transforma o longa em um verdadeiro mapa afetivo da identidade brasileira. E, ao fazer isso com leveza e afeto, ele nos mostra que nossos pequenos podem (e devem) crescer cercados de histórias que falem sobre eles — com respeito, beleza e verdade.
Abá e Sua Banda: Um filme que canta, encanta e permanece
“Abá e Sua Banda” é uma animação que chega devagar, como quem toca um tambor com calma. Mas vai crescendo, invadindo, emocionando. É impossível sair ileso de sua delicadeza. Seja pelo traço, pelas canções ou pelas mensagens, o filme deixa uma marca que perdura.
Ele não quer apenas entreter. Quer lembrar que a arte transforma. Quer dizer que todos temos uma voz — e que vale a pena usá-la. Quer mostrar que o Brasil é imenso, diverso e absolutamente belo, mesmo quando precisa enfrentar silêncios.
Se você está disposto a ouvir uma história que fala de identidade, coragem, tradição e reinvenção, "Abá e Sua Banda" vai ser mais do que um filme. Vai ser uma lembrança boa — daquelas que tocam e aquecem.
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