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[CRÍTICA] BOLERO: A MELODIA ETERNA – o eco da arte num coração silencioso

  • Foto do escritor: Manu Cárvalho
    Manu Cárvalho
  • 19 de abr.
  • 5 min de leitura

LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho

A força de “Bolero: A Melodia Eterna” está em sua recusa a simplificar.
A força de “Bolero: A Melodia Eterna” está em sua recusa a simplificar. (Foto: Reprodução / CinePop)

Quando a dançarina russa Ida Rubinstein encomendou ao compositor francês Maurice Ravel uma peça para balé, ela jamais imaginaria que ele entregaria uma das músicas mais reconhecidas do mundo. Com um único tema repetido e uma orquestração crescente, o Boléro tornou-se uma obra-prima da persistência, do controle emocional e da subversão musical. Mas quem era Ravel? O que pulsava dentro desse homem discreto e perfeccionista, cuja arte parecia tão precisa quanto seu silêncio?


Em "Bolero: A Melodia Eterna", que estreou nos cinemas brasileiros em 17 de abril de 2025, a diretora Anne Fontaine tenta responder a essas perguntas — não com explicações, mas com sensações. A cinebiografia, estrelada por Raphaël Personnaz, nos convida a entrar no universo íntimo de um gênio que preferia o sussurro à grandiloquência, a contemplação à exposição.


A dança silenciosa de um gênio inquieto

Desde o primeiro plano, Fontaine nos prepara para um mergulho melódico, quase hipnótico. Paris, 1928. O modernismo começa a tomar conta das artes e da vida urbana. Mas Ravel permanece alheio à agitação. Ele caminha devagar. Observa. Pensa. Dentro de si, carrega o peso de traumas antigos, de uma guerra que não combateu, mas que o feriu mesmo assim, e de amores que nunca puderam florescer. Sua vida, como sua música, é construída de repetições delicadas e progressões invisíveis.


A chegada de Rubinstein (vivida com intensidade por Jeanne Balibar) funciona como gatilho para uma nova criação. Ela quer uma peça sensual, ousada, diferente. Ravel, esgotado criativamente, reluta. Mas aos poucos, vai esculpindo o que seria sua composição mais conhecida — e, ironicamente, a mais incompreendida por ele mesmo.


Raphaël Personnaz: um Ravel contido, mas luminoso

No centro do filme está a atuação de Raphaël Personnaz, que interpreta Ravel com a contenção e o brilho necessários. Sem recorrer a gestos teatrais, o ator compõe um personagem introspectivo, exato, cuja dor é visível no olhar, mas raramente verbalizada. A elegância da performance reside na capacidade de fazer com que o espectador sinta, mesmo quando pouco é dito.


Personnaz retrata o compositor como um homem dividido entre o desejo de pertencer ao mundo e a necessidade de se recolher. Ele convive com figuras intensas — artistas, mecenas, amantes platônicos — mas nunca se mistura por completo. Sempre parece um pouco à parte, como um maestro que rege uma orquestra à qual ele mesmo não pertence.

O que há é um silêncio que constrói significado.
O que há é um silêncio que constrói significado. (Foto: Reprodução / Cinema com Rapadura)

Doria Tillier e Jeanne Balibar: mulheres que orbitam a genialidade

Se Ravel é o centro silencioso do filme, as mulheres ao seu redor são os elementos que o desestabilizam. Doria Tillier, no papel de Misia Sert, musa e amiga íntima do compositor, entrega uma personagem solar, sensual e cheia de contradições. A relação entre os dois é feita de diálogos subentendidos, olhares intensos e a eterna pergunta que não se responde: poderia ter sido amor?


Jeanne Balibar, como Ida Rubinstein, injeta energia e provocação na narrativa. Sua personagem exige de Ravel algo que ele não sabe se pode — ou se quer — dar. Ela representa o mundo da performance, da ousadia, da provocação. Ele, o da estrutura, da precisão, do recato. O embate entre os dois resulta em arte — e no Boléro.


Anne Fontaine: uma diretora que escuta o silêncio

Após ter comandado cinebiografias como Coco Antes de Chanel, Anne Fontaine retorna com uma sensibilidade ainda mais aguçada. Ela não se interessa pelos grandes escândalos da vida de Ravel. Não há cenas explosivas nem momentos catárticos. O que há é um silêncio que constrói significado.


Fontaine opta por uma narrativa não linear, que alterna o presente da composição com memórias de infância, fragmentos da guerra e momentos de contemplação solitária. A diretora entende que a vida de um artista é feita menos de fatos e mais de estados de espírito. Por isso, o filme se constrói como uma melodia: começa sutil, cresce devagar, atinge um clímax e, então, se desfaz.


Cinematografia e trilha sonora: uma carta de amor à Paris e à música

A fotografia de Christophe Beaucarne é elegante e nostálgica. A Paris dos anos 1920 surge como um cenário quase mítico, entre o realismo e o devaneio. Os interiores — salas de concerto, casas com cortinas pesadas, estúdios de ensaio — são filmados com luz natural, destacando os gestos e olhares dos personagens.


Já a trilha sonora, assinada por Bruno Coulais, mistura composições originais com trechos da obra de Ravel. O Boléro, claro, é o fio condutor da narrativa. Ele aparece não apenas como música, mas como presença física. A cada cena, ele ressurge: num compasso batido com os dedos, no som dos passos, no sussurrar de uma lembrança. Até que, finalmente, ouvimos a peça completa — e tudo faz sentido.

“uma observação muito próxima da psicologia de um gênio às vezes perdido em sua própria música.”
“uma observação muito próxima da psicologia de um gênio às vezes perdido em sua própria música.” (Foto: Reprodução / Ambrosia)

Um filme sobre criação, dor e eternidade

A força de “Bolero: A Melodia Eterna” está em sua recusa a simplificar. A vida de Ravel foi marcada por privações, inseguranças e rigores — mas também por beleza, disciplina e entrega. O filme capta essa dualidade com precisão. Não há vilões nem heróis. Apenas pessoas tentando criar algo que resista ao tempo.


Quando Ravel finalmente termina a partitura, há silêncio. Ele não comemora. Não sorri. Apenas observa a música, como se não fosse dele. E talvez não seja mesmo. Porque o Boléro, como toda grande arte, pertence ao mundo — e à eternidade.


Crítica e recepção: uma melodia que ecoa entre gerações

A recepção da crítica ao filme tem sido mista, mas respeitosa. Há quem considere a narrativa lenta demais. Outros, que sentem falta de conflitos mais evidentes. Mas a maioria reconhece a delicadeza da proposta e o cuidado na execução.


O portal Cineuropa afirmou que o filme "oculta uma dor silenciosa sob sua aparência tradicional" e oferece “uma observação muito próxima da psicologia de um gênio às vezes perdido em sua própria música.” E talvez essa seja mesmo a melhor definição: não um filme sobre música, mas um filme com música — uma experiência sensorial que nos aproxima de uma alma em silêncio.


BOLERO: Um bolero em forma de cinema

Assim como a composição que homenageia, “Bolero: A Melodia Eterna” é uma obra que cresce lentamente, que exige paciência, atenção e escuta. É um filme sobre a criação, sobre os silêncios da alma e sobre o poder da arte de dizer o que as palavras não conseguem.


Não é uma cinebiografia convencional. É um gesto. Um suspiro. Um eco. E, no fim, quando os créditos sobem e o Boléro toca pela última vez, resta apenas o silêncio — aquele que vem quando somos tocados de verdade.


Nota final: ⭐⭐⭐⭐(4/5)

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