[CRÍTICA] Regras do Amor na Cidade Grande: a coragem de existir entre os arranha-céus da Coreia do Sul
- Manu Cárvalho
- 4 de abr.
- 5 min de leitura
LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho

A cidade grande pulsa, muda, engole, esconde. É cenário de sonhos, mas também de solidões. E é nesse ambiente que nasce Regras do Amor na Cidade Grande, filme sul-coreano baseado no romance de Park Sang-young, dirigido com sensibilidade por E.oni. Com estreia em 3 de abril de 2025 nos cinemas brasileiros, o longa mergulha nas angústias e delícias de viver, amar e ser quem se é — mesmo quando tudo à sua volta parece exigir o contrário.
Em um país onde temas como homossexualidade, saúde mental e relações familiares conservadoras ainda enfrentam barreiras culturais, o filme se propõe a tocar em feridas e acalentar com empatia. Com Kim Go-eun e Steve Sanghyun Noh liderando o elenco com performances de tirar o fôlego, a produção entrega muito mais que um drama romântico: é um retrato humano, agridoce e profundamente necessário.
A trama: duas almas em busca de liberdade
Jae-hee (Kim Go-eun) é uma jovem mulher destemida, sarcástica, dona de um senso de humor ácido e de uma alma inquieta. Heung-soo (Steve Sanghyun Noh) é seu oposto: introspectivo, gentil, um homem gay que vive à sombra do próprio medo de ser rejeitado por sua família, por sua cultura, por ele mesmo. Eles se conhecem por acaso em um hospital, e esse encontro muda o rumo de suas vidas.
Decididos a morar juntos, constroem uma espécie de família alternativa — uma amizade que acolhe, que confronta e que ensina. Entre drinques, frustrações amorosas, crises de identidade e noites insones, Jae-hee e Heung-soo se tornam uma dupla inseparável. Mas o mundo fora do apartamento insiste em invadir. O preconceito, a culpa, a saudade, os erros e a necessidade de pertencimento rondam a dupla como sombras persistentes.

Kim Go-eun: explosão e vulnerabilidade
Conhecida por seus papéis em Goblin e Yumi’s Cells, Kim Go-eun reafirma seu talento em Regras do Amor na Cidade Grande. Sua Jae-hee é vibrante, imperfeita e absolutamente real. Com um timing cômico afiado e uma entrega dramática potente, Go-eun oscila entre o deboche e a dor com fluidez.
Jae-hee é daquelas personagens que gritam para não chorar, que debocham do mundo para não serem engolidas por ele. Em um dos momentos mais marcantes do filme, ela desaba diante de um médico após uma crise de ansiedade, perguntando: “Por que viver precisa doer tanto?”. Go-eun transforma essa fala em uma lâmina: corta e ecoa.
Steve Sanghyun Noh: silêncios que falam muito
Steve Sanghyun Noh tem o tipo de presença que não precisa de muitos gestos. Seus olhos carregam o peso de um personagem que cresceu ouvindo que deveria se esconder. Como Heung-soo, ele transmite ternura, fragilidade e força com a mesma intensidade. Seu arco é um dos mais dolorosos e bonitos do filme.
Heung-soo vive dividido entre a vontade de ser livre e o medo de decepcionar a mãe religiosa (vivida com maestria por Jang Hye-jin). Há uma cena em que ele tenta se assumir para ela e recua no último segundo. O silêncio entre os dois diz mais que qualquer diálogo. Noh domina essas pausas com precisão.
Uma amizade que é amor — e vice-versa
Regras do Amor na Cidade Grande não é uma história de amor tradicional. É sobre o amor que não precisa ser romântico para ser transformador. A relação entre Jae-hee e Heung-soo é de um afeto tão profundo que redefine o que entendemos por companheirismo. Eles cuidam um do outro, brigam, fazem besteira juntos e também se salvam mutuamente.
Há uma cena simbólica em que os dois assistem a um show de drag queens abraçados, rindo e chorando ao mesmo tempo. Ali, o filme sintetiza seu espírito: a dor existe, mas a beleza também. E ela se revela nos vínculos que escolhemos construir, apesar das feridas que carregamos.

Roteiro e direção: poesia urbana em camadas
O roteiro de Park Sang-young, adaptado da sua própria obra, não tem pressa. Ele constrói personagens com camadas, dando tempo para que o espectador se envolva com eles. É um texto que evita clichês e aposta em pequenos gestos, em conversas cotidianas que revelam muito mais que declarações grandiosas.
A direção de E.oni é sensível e respeitosa. Ela usa a cidade como cenário e metáfora: Seul é um personagem vivo, com seus becos iluminados por neon, cafés silenciosos, estações de metrô lotadas e apartamentos apertados. Tudo é íntimo, quase claustrofóbico, mas também acolhedor — como os sentimentos que o filme desperta.
A importância da representatividade sem estereótipos
Um dos maiores méritos do longa é representar um personagem gay com dignidade, profundidade e humanidade. Heung-soo não é alívio cômico, não é trágico estereotipado, nem mártir. Ele é um homem complexo, com desejos, dúvidas, força e medo. Sua sexualidade é parte de quem ele é, mas não o define por completo.
Essa abordagem tem peso simbólico e cultural significativo, especialmente em um país onde a homossexualidade ainda é vista como tabu. O filme não faz panfletagem, mas assume uma postura política ao simplesmente permitir que Heung-soo exista — com amor, com medo, com desejo de ser aceito.
Trilha sonora e estética: lirismo moderno
A trilha sonora mistura baladas melancólicas com batidas eletrônicas suaves, criando uma atmosfera que acompanha os estados de espírito dos protagonistas. É uma trilha que emociona sem manipular, que embala sem distrair.
A estética do filme é marcada por cores quentes em ambientes internos e tons frios nas cenas externas, reforçando a dicotomia entre o lar e o mundo, entre o conforto e a hostilidade. A fotografia de Cho Young-jik capta cada nuance de luz e sombra como metáforas visuais das emoções dos personagens.
Recepção e impacto: do livro às telas, um acerto com o público
Regras do Amor na Cidade Grande já chegou aos cinemas com altas expectativas, graças ao sucesso do livro. A adaptação foi elogiada pela crítica por manter a alma da obra original, ao mesmo tempo em que encontrou um ritmo próprio no cinema.
A recepção do público tem sido igualmente positiva. Nas redes sociais, a hashtag #LoveInTheBigCity explodiu com relatos de identificação, lágrimas e agradecimentos. Muitos jovens LGBTQIA+ destacaram o impacto de verem uma história como essa sendo contada com tanto cuidado.
Regras do Amor na Cidade Grande: amar é existir com coragem
No fim, Regras do Amor na Cidade Grande é sobre coragem. A coragem de amar, de ser, de falhar, de recomeçar. É sobre criar laços em um mundo que insiste em nos dizer que estamos sozinhos. É sobre encontrar beleza no caos urbano, no cansaço dos dias e nos afetos silenciosos que nos sustentam.
Com atuações poderosas, direção delicada e um roteiro que respeita a inteligência do espectador, o filme entrega uma experiência que emociona e transforma. Ele nos lembra que amar, em qualquer forma, é o mais radical dos atos — especialmente quando o mundo insiste em nos impor regras para isso.
Nota final: ⭐⭐⭐⭐½ (4,5/5)
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