[CRÍTICA] Uma Advogada Brilhante: entre risos e reflexões sobre identidade e igualdade
- Manu Cárvalho
- 6 de mar.
- 5 min de leitura
LUZ, CÂMERA, CRÍTICA! — Por Manu Cárvalho

A comédia brasileira sempre teve um papel fundamental em refletir, com ironia e irreverência, os dilemas sociais e culturais do país. Uma Advogada Brilhante, dirigido por Alê McHaddo e estrelado por Leandro Hassum, é um exemplo recente dessa tradição.
Lançado nos cinemas em 6 de março de 2025, o filme se propõe a ir além do riso fácil, abordando questões contemporâneas como equidade de gênero, discriminação no mercado de trabalho, masculinidade frágil e as complexas camadas da identidade social.
Com uma narrativa leve, mas ambiciosa, a produção busca provocar reflexões enquanto mantém o público entretido.
A trama: um nome, duas identidades
Michelle Barbieri, conhecido como Mike (Leandro Hassum), é um advogado talentoso que enfrenta dificuldades pessoais e profissionais. Com um nome italiano que frequentemente gera confusões de gênero, Mike está sob pressão para manter seu emprego e garantir a guarda do filho, ameaçado de ser levado ao exterior pela ex-mulher. Tudo muda quando o escritório em que trabalha é comprado por uma firma internacional que decide implementar um plano de diversidade e demitir homens para reequilibrar a equipe. Vendo uma oportunidade, Mike assume a identidade de Dra. Michelle para manter o emprego, sustentar o filho e, de quebra, redescobrir o mundo sob a ótica feminina.
Essa premissa, que poderia facilmente cair na armadilha da caricatura, é desenvolvida com uma combinação de humor físico, trocadilhos e situações de “comédia de erros”. Entretanto, o que poderia ser apenas mais um filme sobre um homem se disfarçando de mulher — um trope comum do cinema — é aqui utilizado como ponto de partida para discutir desigualdades reais e refletir sobre o que é estar nos sapatos do outro.
Leandro Hassum: versátil e vulnerável
Hassum está confortável em seu papel, demonstrando o timing cômico que o tornou um dos rostos mais reconhecíveis da comédia nacional. Como Mike, ele apresenta um homem frustrado, cínico, tentando sobreviver a um sistema que parece sempre colocá-lo em segundo plano. Como Dra. Michelle, Hassum incorpora não apenas a feminilidade, mas a empatia, a escuta e a paciência — qualidades muitas vezes negadas ao personagem masculino.
Há cenas particularmente impactantes em que Mike, vivendo como Michelle, presencia microagressões, piadas machistas e atitudes condescendentes por parte de colegas e superiores. O desconforto estampado em seu rosto não é apenas parte do roteiro: é também um reflexo do aprendizado que ele, e o espectador, estão sendo convidados a fazer. O arco do personagem, que inicialmente utiliza o disfarce apenas por interesse próprio, vai ganhando camadas mais complexas à medida que ele começa a entender o cotidiano das mulheres com quem convive.

Uma direção sensível e cheia de propósito
Alê McHaddo, que também atua no filme como Dra. Marcella, assume a direção com um olhar cuidadoso e pessoal. Sendo uma mulher trans e diretora estreante em um longa-metragem de comédia, McHaddo opta por uma abordagem que evita o tom debochado e entrega uma narrativa que, apesar dos exageros típicos do gênero, se sustenta por seu coração sincero.
A escolha da diretora de participar ativamente da trama, inclusive como uma das principais vozes de consciência do protagonista, não é casual. Sua personagem é quem constantemente desafia Mike a repensar sua postura, suas falas e até mesmo sua própria identidade. Há uma troca simbólica entre quem dirige e quem protagoniza: a comédia se torna espaço de escuta, de aprendizado, de conflito e de construção.
Coadjuvantes que reforçam o debate
O elenco de apoio de Uma Advogada Brilhante é composto por nomes conhecidos e carismáticos da comédia e do entretenimento brasileiros. Danilo Gentili, no papel do juiz responsável pela disputa de guarda, traz o sarcasmo característico de seu estilo, mas também entrega momentos inesperados de sensibilidade. Nany People, em participação especial, representa uma das vozes mais lúcidas do filme, costurando as situações cômicas com observações afiadas sobre identidade e representatividade.
Personagens como a ex-esposa de Mike (interpretada por Claudia Campolina) e os colegas do novo escritório funcionam como catalisadores das transformações do protagonista. Cada um, à sua maneira, evidencia as diferentes formas de desigualdade que perpassam as estruturas sociais — do julgamento baseado em aparência à falta de escuta e empatia nos relacionamentos interpessoais.
Humor com consciência social
A comédia de Uma Advogada Brilhante tem ritmo, mas o que mais surpreende é sua intencionalidade. O riso, aqui, não vem apenas do absurdo da situação, mas da crítica social embutida nos diálogos e nas cenas cotidianas. Há um momento em que Michelle, vestida com roupas femininas, tenta pegar um táxi à noite e é ignorada repetidamente. Outro em que suas ideias em reunião são tratadas com desdém, até serem repetidas por um colega homem e finalmente levadas a sério.
Essas passagens, embora apresentadas com leveza, não deixam de ser espelhos do mundo real. O mérito do roteiro, assinado por Luiz Felipe Mazzoni e Alê McHaddo, está em conseguir equilibrar o entretenimento com a denúncia sutil. Não há longos monólogos explicativos, nem lições de moral explícitas. O aprendizado do protagonista é gradual, feito através do cotidiano e da vivência — como acontece na vida.
Visual e ritmo: um filme dinâmico e atual
O design de produção aposta em ambientes que refletem a dualidade do protagonista: o apartamento masculino e bagunçado de Mike contrasta com os espaços corporativos clean e sofisticados onde Dra. Michelle circula. O figurino também desempenha um papel essencial na construção da narrativa: ao longo do filme, as roupas deixam de ser apenas um disfarce e começam a incorporar elementos que revelam uma identidade em transformação.
A montagem é ágil, com transições bem-humoradas e uso pontual de efeitos visuais para reforçar o clima de sátira. A trilha sonora, composta por músicas originais e hits populares brasileiros, ajuda a manter o ritmo e acrescenta uma camada de identificação para o público.

Recepção e polêmicas: entre aplausos e críticas
A estreia de Uma Advogada Brilhante dividiu opiniões. Nas redes sociais, o filme foi elogiado por trazer à tona discussões urgentes, especialmente com o público mais jovem e engajado em temas sociais. Entretanto, também foi alvo de críticas, sobretudo por parte daqueles que consideram que o filme recorre a estereótipos e abordagens fáceis para tratar de assuntos complexos.
Algumas vozes questionaram se o uso da “farsa de gênero” como dispositivo narrativo seria adequado em um contexto de crescente conscientização sobre diversidade e identidade de gênero. A própria diretora, em entrevistas, reconheceu que o filme corre riscos, mas defendeu que “rir também é uma forma de entender o outro, e a comédia é um canal legítimo para esse diálogo”.
A importância de rir e refletir
No fim das contas, Uma Advogada Brilhante não pretende ser uma obra definitiva sobre feminismo, masculinidade ou identidade. O que o filme faz é abrir espaço para que essas discussões cheguem a um público mais amplo, em um formato acessível, com humor e empatia. E isso, por si só, já é um feito digno de nota.
A transformação de Mike não é apenas sobre um homem se vestindo de mulher. É sobre um homem aprendendo a escutar, a respeitar, a compreender que sua visão de mundo não é a única. Ao final da trama, quando Mike volta a ser ele mesmo, não há um retorno ao ponto de partida. Ele é outro — e nós, espectadores, também.
Uma Advogada Brilhante: Uma comédia com propósito
Uma Advogada Brilhante é mais do que uma comédia de disfarces. É um filme sobre escuta, sobre transformação, sobre dar um passo atrás para enxergar melhor. Com uma direção que une sensibilidade e leveza, um roteiro bem amarrado e uma atuação sólida de Leandro Hassum, a produção entrega exatamente aquilo que se propõe: provocar o riso e, ao mesmo tempo, o pensamento.
Embora tenha limitações e tropece em alguns clichês, o saldo é positivo. É um filme necessário em um momento em que o Brasil precisa rir — mas precisa, sobretudo, aprender a rir de si mesmo sem esquecer das responsabilidades que isso traz.
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